ABSTENCIONISMO por LUIGI BERTONI (Enciclopédia Anarquista)

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Tradução do espanhol: Rosa Silva
Outubro de 2014 – Biblioteca Terra Livre

Apresentação

Traduzimos um verbete da tão comentada Enciclopédia Anarquista, organizada por Sebatién Faure, resultado de um grande esforço coletivo. Inspirado nos grandes eciclopedistas do século XVIII, Faure anuncia que a obra não é uma empreitada comercial e sim “uma obra de educação libertária”. A ela os anarquistas podem recorrer para obter informações e opiniões sobre os mais variados temas, sempre numa perspectiva libertária.
Por ocasião da Campanha Existe Política Além do Voto de 2014, realizada por uma coalizaão de grupos aanrquistas e autônomos em todo o país, decidimos disponibilizar o verbete sobre abstenção eleitoral, escrito pelo anarquista italiano Luigi Bertoni. Percebemos que muitos candidatos oportunistas (não que haja algum político que não seja) estão se utilizando das manifestações ocorridas pelo país desde junho de 2013 como trampolim eleitoral. O mais absurdo é ver o candidato representante dos interesses doas empresários, presidente da FIESP, falando com o maior cinismo e cara de pau que votar nele seria uma espécie de continuação das lutas ocorridas nas ruas, lutas que, aliás, é bom recordarmos, foram duramente reprimidas pelas forças policiais do estado, o mesmo que tal canalha pretende ocupar agora.
Mas acreditamos que essa falácia até os mais desavisados percebem. Mas há uma corja de malandros que se dizendo “de esquerda” reivindicam para si o rótulo de o candidato “das ruas” ou que apresentam pautas próximas às que surgiram tantos nas mobilizações contra o aumento da tarifa como nos atos contra realização da copa do mundo no Brasil. Esses pedem os votos dos manifestantes, usam palavras de ordem das ruas (bem, mas até o TSE usa o seu “#vem pra urna”, numa ridícula alusão e despolitização do grito “vem pra rua”) e dizem que é necessário continuar a “mudança”. Inelizmente, muitos inocentes caem nesse discurso. E para nossa surpresa até pessoas que estavam de fato nas lutas nas ruas, se organizando de maneira horizontal, tentando mudar as coisas pela ação direta e descentralizada da luta política acreditam que a via parlamentar pode ser uma “alternativa” para solucionar os problemas estruturais de uma sociedade hierárquica e capitalista. E pasmém, até ditos “anarquistas” acabam, sabe-se lá porque mecanismo psicológico, votando, sob argumentos totalmente inexplicáveis e injustificáveis.
Há anos a Campanha Existe Política Além do Voto vem demosntrando sua posição que pode ser lida em seu manifesto no site alemdovoto.milharal.org. Porém, nunca é demais reforçar os motivos pelos quais, nós anarquistas, somos por princípio abstencionistas, nesta e em qualquer outra eleição que se apresente diante de nossos olhos.
Para explicar melhor este tema recorremos ao verbete de Luigi Bertoni, traduzido pela primeira vez em português. Bertoni nasceu em Milão na Itália em 1872, foi tipógrafo de profissão e um dos maiores organizadores de sindicatos na Suiça. Fundou o jornal bilíngue (italiano/francês) Il Risveglio/Le Réveil em Genebra, foi preso em 1918 acusado de ter lançado uma bomba (acabou inocentado) e lutou na Revolução Espanhola em um front formado por italianos. Foi um ferrenho crítico da participação anarquista no governo republicano espanhol e autor de centenas de artigos em jornais anarquistas e livros de temáticas libertárias. Foi um dos colaboradores que ajudaram Sebastién Faure a escrever a monumental obra em 4 volumes, a Enciclopédia Anarquista, publicada entre 1925 e 1934. Faleceu em Genebra no ano de 1947.
Para explicar em poucas linhas o propósito da Campanha que os anarquistas travam contra o sistema eleitoral-parlamentar façamos nossas as palavras de Bertoni: “Negar-se a ser eleitor significa, para nós, reivindicar o direito de exercer uma intervenção direta, constante e decisiva, em todas as manifestações da vida pública”. E essa intervenção não faz através do voto, mas sim pela ação direta, construindo a autogestão e o federalismo anarquista.

Biblioteca Terra Livre

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ABSTENCIONISMO, s.m.
Por Luigi Bertoni
(Verbete da Enciclopédia Anarquista, organizada por Sebastién Faure)

“Doutrina que preconiza a abstenção em matéria eleitoral”, diz o dicionário Larousse. Fanfani o define com mais precisão: “Não querer exercer os direitos olíticos nem participar das tarefas públicas”. De toda maneira, estas definições não dizem nada em si sobre a razão, o significado e o alcance da abstenção. Uma nota do mesmo Larousse nos permite nos permite estabelecê-las contraditoriamente. Diz assim: “A anstenção política, que repousa na negligência ou na indiferença, prova um esquecimento egoísta e reprovável dos deveres de cidadão. Essa abstenção é às vezes praticada sistematicamente como maneira de protesto, seja contra o goberno estabelecido ou seja contra uma forma de sufrágio que não oferece as garantias suficientes”.
Não é por negligência ou indiferença, nem tampouco comomprotesto contra tal ou qual governo ou modo particylar de sufrágio o motivo pelo qual nós anarquistas somos abstencionistas: é por uma questão de princípio.
Nós não admitimos uma pretendido direito de maioria. Antes de tudo devemos assinalar que foi matematicaente provado que nenhum parlamento nem nenhum governo representou jamais, até hoje, a maioria efetiva de um país. E mesmo que este fato se produzisse, nós discutiríamos sempre com tal parlamento e tal governo o direito de submeter as minorias à suas leis. Sem pretender que as maiorias não tenham nunca razão, para rechaçar todo direito maioritário, basta afirmar que as minorias têm razão frequentemente, ou simplesmente que elas podem também ter razão.
Fora o caso particular de não poder escolher mais que entre duas decisões e de impossibilidade material de aplicar livremente as duas simultameamente, a minoria tem, segundo a nossa opinião, uma liberdade de ação igual à da maioria. Naturalmente, o direito da minoria não será inferior ao da maioria mais que na medida em que sejam suas forças de realização.
Acrescentamos que nós não reivindicamos tão somente o direito do grupo minoritário igual ao do grupo maioritário, mas também um direito individual limitado unicamente pelos poucos meios que representa um só indivíduo por si mesmo.
Há nisso uma razão fundamental. Toda invenção, descobrimento ou nova verdade, em todos os domínios da vida, sempre se deveram à estreita cooperação de grupos reduzidos, apesar de esses grupos e esses indivíduos tenham se aproveitado, como é lógico, do conjunto de conhecimentos humanos sem os quais o novo passo dado seria inconcebível. Nada é evidentemente mais nocivo ao progresso, e nada poderia retarda-lo tanto, como fazer depender previamente da maioria a aplicação da conquista. A mais ampla autonomia e o experimento sem travas para os diferentes ensaios, tentativas e aplicações, são as condições indispensáveis para toda realização audaz e fecunda. Condições em oposição formal a todo pretendido direito de maioria. Por outro lado, se os inovadores caem em erro, nadamelhor que a experiência para prova-lo, depois a queal poderia abandonar, modificar suas tentativas.
O adágio “os ausentes são sempre culpados” não pode aplicar-se ao abstencionismo anarquista. E mais: deve aplicar-se com mais razão aos eleitores que aos elegidos. Não é um paradoxo o que formulamos, mas sim a verdade fácil de demonstrar. De fato: qual é a abstenção que mais devemos sentir, a dos poucos minutos necessários para votar ou a de todos os dias do ano? Porque, em suma, o direito de votar implica a renúncia de ocupar-se das tarefas públicas durante período determinado, em cujo decurso o elegido se encarregada de ocupar-se totalmente no lugar do eleitor, quem se transforma no “ausente sempre culpado”. E os fatos provam que os eleitores o são, sem dúvida nenhuma.
Evidentemente, o abstencionista por negligência ou indiferença se encontra no mesmo caso, mas é muito diferente do anarquista, o qual não quer deixar de participar em todos os lugares que seu futuro seja discutido e se encontre em jogo, porque quer fazer-se presente para pesar, com o peso de toda sua personalidade, sobre as decisõses que possam adotar-se.
Só é logicamente anarquista o abstencionismo quando significa, por um lado a negação de toda autoridade legislativa e, por outro, a reivindicação – e aplicação na medida em que seja possível – do princípio de fazer por si mesmo tudo aquilo que lhe diz respeito e que por próprio impulso se possa realizar.
Os “deveres do cidadão” – se é que há deveres – não podem reduzir-se de maneira alguma à obrigação de depositar um papel dentro de uma urna. Esses deveres devem aplicar-se em todo momento e em toda ocasião que sejam necessários. Portanto, o voto não significa, em resumo, mais do que delegar ao outro o próprio dever, o que é uma verdadeira incongruência.
Tanto se se considera a participação nas tarefas públicas como um direito ou como um dever, em nenhuma das formas ela poderia dar lugar a uma delegação, a menos que se negue na prática aquilo que se afirmou teoricamente.
Vejamos: Pode o homem cultivar-se, instruir-se, melhorrar e fortificar-se por delegação? Não, já que se pressupõe, acima de tudo, uma atividade pessoal do indivíduo, que pode ser mais ou menos favorecida por outros, mas sempre segundo o adágio que diz: “Ajuda-te e serás ajudado”. “A superstição – já disse Gabriel Séilles muito acertadamente – Consiste em pedir a uma potência desconhecida, ou em esperar dela, aquilo que cada um não se sente capaz”. Não é isso, precisamente, o que continuam fazendo as multidões eleitorais, seguindo aos malandros da política?
Podemos imaginar pior educação que a que consiste em descarregar sobre alguns indivíduos o cuidado de tratar as questões em que estão em jogo o interesse de todos, cuja solução poderá ter as maiores consequências para a humanidade?
Nos abstemos de insistir sobre as torpezas da política e dos políticos, sobre o espetáculo repugnante que sempre proporciona o parlamentarismo. E mesmo que todos os eleitos fossem homens probos, o que é impossível, nós não deixaríamos por isso de ser os adversários de um sistema que mantém sob um estado de tutela, de minoria, de inferioridade, a maior parte dos cidadãos.
Negar-se a ser eleitor significa, para nós, reivindicar o direito de exercer uma intervenção direta, constante e decisiva, em todas as manifestações da vida pública, o que não se pode deixar nas mãos de uns poucos indivíduos.
Nosso abstencionismo não significa, pois, uma cômoda almofada onde pode descansar nossa preguiça, mas pressupõe toda uma ação de resistência, de defesa, de rebeldia e de realização de todos os dias.
Os socialistas parlamentares pretendem dizer que, assim, nós engrossamos o caldo da burguesia. Examinemos, pois, os fatos com detalhes.
Todos concordamos que o parlamentarismo é uma instituição claramente burguesa. Participar nesta instituição é contribuir ao seu funcionamento, ao seu jogo. É possível transformar esse jogo de burguês em socialista? Os fatos respondem sem exceção que não.
A razão é muito simples: ou a maioria continuará sendo burguesa, pelo que é certo que imporá seu próprio jogo à maioria socialista e, em tal caso, tudo está perdido de antemão, e obstinar-se em jogar com os burgueses é incompreensível, a menos que admitamos que os jogadores socialistas, pedindo tudo em nome do povo, podem, porém, ganhar algo para eles mesmos, ou então a maioria será socialista, cujo caso é evidente que o jogo parlamentar, cuja origem, desenvolvimento e objetivo são estritamente burgueses, deverá ser substituído por instiruições novas, por meio das quais as massas trabalhadoras não podem ser enganadas.
Praticamente, a história de todas as votações e das eleições, particularmente na Suíça, onde se encontra o sistema mais desenvolvido e aperfeiçoado, nos ensina que a burguesia alcança sempre seus fins, apesar de todas as “consultas populares”. Por outro lado, não lhes faltam os meios para alcançar ilegalmente o que não se pode conseguir legalmente. A forma de aplicação da jornada legal de 8 horas deveria ser uma lição interessante para os eleitores. E assim sucede, naturalmente, com todas as leis sediciosas de proteção aos operários. E nós somos abstencionistas precisamente porque o sufrágio universal é um jogo oligárquico por excelência, inclusive à margem de todas as trapaças que lhe são familiares.
Nos dias de eleições, os candidatos, eternos banqueiros manipuladores, gritam: “Ao jogo!”. Os ingênuos que votam verão como eles recolhem as cédulas eleitorais e escutarão as mesmas vozes gritar: “Já não se joga mais!” E este jogo de poder no qual, como em todos os jogos, é o banqueiro que corta o baralho quem ganha, pode durar eternamente. Se os jogadores chegam a iludir-se alcançando algum pequeno ganho , muito de vez em quando, perderão logo a ilusão, porque esse ganho lhe será retirado com juros.
Existe um ponto sobre o qual estamos convencidos de não nos equivocarmos. É quando aconselhamos à classe trabalhadora a abstenção do jogo eleitoral, com a qual sempre se faz engrossar o caldo dos representantes do Estado.
Para nós este princípio se aplica tanto às eleições para as câmaras legislativas, como para os conselhos cantonais de província ou de mincípio, assim como também às eleições dos poderes executivos e judiciários onde quer que se realizem. Aplicamos, além disso, a todas as eleições referentes a direitos através de referendos, de iniciativas e da legislação dita direta.
Na impossibilidade de refutar o fundamento básico de nossas objeções, os partidários do voto exclamam: “Sua crítica é estéril e sem sentido. Diga-nos o que se deve fazer”.
Observemos primeiro este fato: embora nós possamos ou não dizer o que há de fazer, nossa opinião não muda em nada a comprovação de que com a cédula do voto o resultado é nulo. E como esta verdade é incontestável, não é para nós que se deve formular a pergunta, mas sim que cada indivíduo formule-a a si mesmo.
Apesar de o abstencionismo anarquista não ter obtido como resultado mais do que a pergunta “o que fazer?”, proposta de forma imperiosa e universalmente, o valor da mesma seria já muito elevado.
Com o sistema eleitoral, a grande massa dos eleitores adere a alguns quantos eleitos. Isso resulta que “quem vota o faz sobretudo com a ideia mais ou menos consciente de abster-se, imediatamente depois, de ocupar-se das tarefas da vida pública”. Para isso se descarrega sobre o eleito. O voto, mais que uma participação na vida pública, é uma renúncia de ocuper-se dela. Cada eleitor pensa que melhor será que outro o faça por ele.
Entretanto, a coisa pública é tão imensa, tão complexa e árdua que nunca é demais a participação de todas as inteligâncias, capacidades e forças para servi-la devidamente. Mas isto se faz fora do Parlamento, com o qual a utilidade deste é bem duvidosa, ou melhor, o Parlamento só intervém para ordenar o que não sabe fazer a quem sim o sabe, com o que sempre estamos sob o reinado sistemático da incompetência.
Dado que cada indivíduo só pode responder a pergunta “o que fazer?” apartir do que conhece, podemos considerar o Parlamento como um absurdo, pois que deve, por definição, responder a todas as necessidades que implica a vida social.
As frases vagas dos programas eleitorais não responderam jamais à temímel pergunta “o que fazer?”. É uma resposta que nenhuma maioria eleitoral poderá dar jamais, mas cada indivíduo pode e deve dar com o quanto conhece das formas infinitas de trabalho humano.
E precisamente porque o voto não é mais que uma artimanha para maioria escapar da pergunta “o que fazer?”, é que nós não o queremos.