Manifesto

IWWEXISTE POLÍTICA ALÉM DO VOTO!

Já percebeu que votar não resolve os verdadeiros problemas da população? Vem governo, vai governo e a situação permanece igual. Nas eleições, os políticos prometem soluções para todos problemas e pedem nossos votos, mas quando são eleitos esquecem daqueles que o elegeram.

Quantas decisões são tomadas sem a nossa opinião? Mudam as leis, constroem usinas e estádios de futebol, aumentam a passagem do transporte público, gastam milhões com seus salários… Mas nada de mais hospitais, escolas e creches. Não fazem nada em relação às enchentes. A polícia continua oprimindo o povo todos os dias.

Os governantes dizem que são ações para o nosso “bem” e que é o “melhor para a gente”. Mas como podem saber o que queremos se não nos consultam?

Eles não querem saber o que precisamos, queremos e desejamos.

Isso tudo não é novidade para maioria de nós. Enxergar que as coisas não vão bem já é um começo, mas não basta. Devemos ir além! Temos que tomar de volta nossas vidas em nossas próprias mãos!!!

Ninguém mais aguenta essa política que nos impõem. A democracia representativa, esse sistema baseado nas eleições de políticos para cargos de governo, é o que mantém as coisas como estão. O poder está concentrado nas mãos de uma minoria que governa em favor dos ricos e poderosos, ignorando as necessidades e os desejos do povo.

O crescimento econômico é uma farsa, pois somente os grandes empresários se beneficiam com ele. O povo, como sempre, recebe só as migalhas que caem dos bolsos cheios dos donos do capital que são favorecidos por aqueles que detém o poder. E nesse sistema capitalista sempre quando alguém ganha, muitos outros perdem…

É por isso que nos colocamos contra esse sistema político-econômico. Não aceitaremos mais que os políticos decidam por nós! Vamos nos organizar e construir novas formas de viver em sociedade.

Existe política além do voto! Votar de quatro em quatro anos não é fazer política. Existe um outro mundo a ser descoberto. Ele não está tão distante quanto imaginamos. Para vê-lo, basta apenas pararmos de aceitar o que nos impõem e passar a agir para alcançar um horizonte que está além do que estamos acostumados a enxergar.

Para isso propomos fazer política todos os dias, coletivamente, e que as decisões e ações partam de cada um e de todos. Uma política construída diretamente pelas pessoas. Que elas mesmas tenham a possibilidade concreta de defender seus interesses e decidirem sobre o rumo das suas vidas, associando-se com outras pessoas que tenham interesses e vontades em comum. Que as decisões sejam tomadas com todos os indivíduos em pé de igualdade, sem nenhum indivíduo com mais poder do que outro, baseados em uma relação de cooperação e solidariedade.

Propomos, ao invés da democracia representativa e das eleições, uma democracia direta em que as pessoas se organizem para decidir sobre os assuntos nos quais estejam envolvidas, seja no seu bairro, na sua escola, no seu local de trabalho, enfim, em qualquer espaço de convivência. Queremos uma política que seja feita no dia-a-dia, que esteja integrada às nossas vidas. Que não tenhamos mais que escolher um governante. Uma política na qual não precisemos mais votar e nem eleger ninguém! Que sejamos nós mesmos a decidir e agir na organização da sociedade.

Essa proposta política é praticada em diversas partes do mundo e por muitos grupos diferentes. Trabalhadores se reúnem para produzir bens ou prestar serviços sem necessidade de um patrão, em sistema de autogestão. Diferentes grupos de pessoas se organizam em associações de bairros, mantém centros culturais, participam de movimentos sociais, culturais e políticos, assim como de manifestações, protestos, ocupações e ações para denunciar as injustiças cometidas pelo Estado e pelos capitalistas. São pessoas que pela ação direta, sem representantes e sem chefes, decidem e atuam na política e na economia de nossa sociedade. Esses grupos se comunicam e se coordenam, combinando ações, criando laços de apoio e ações conjuntas, mas cada um com sua autonomia, organizando-se sem hierarquias e sem um grupo dirigente ou governante, associando-se num sistema que chamamos de federalismo.

Acreditamos que só assim construiremos uma sociedade livre, justa e igualitária.

Façamos nós mesmos a nossa história! Existe política além do voto!

Carta de Princípios

A campanha “Existe Política Além do Voto” é um contraponto à democracia representativa. Porém, nós não nos limitamos a apenas criticar a forma como a política hoje está instituída. Queremos propagar uma outra forma de fazer política, uma alternativa baseada nos seguintes princípios:

 1. Federalismo

Uma forma de organização social que busca a autonomia dos indivíduos e dos grupos, não havendo, assim, uma centralização de poder. Dessa forma, o federalismo é um projeto anti-autoritário no qual o poder parte de baixo para cima, da periferia para o centro.

2. Democracia Direta

Por uma democracia em que todas as pessoas participam ativamente e que tenham igual poder de decisão, ao contrário da atual democracia que chamamos de “representativa”, na qual as pessoas delegam o poder a uma minoria.

3. Autogestão

Quando as pessoas organizam-se e decidem por elas mesmas os rumos de sua vida, sem hierarquia entre    elas, em todos os aspectos e espaços de relações econômicas e sociais. O poder ao invés de ser concentrado nas mãos de poucos está nas mãos de todos.

4. Anticapitalismo

Acreditamos que nossa proposta para a sociedade não será possível e não pode se conciliar com o capitalismo, pois este sistema econômico e social está baseado numa relação desigual entre indivíduos e grupos que estabelecem e mantem os privilégios de uma minoria em relação a uma maioria explorada.

5. Ação direta

Significa que os oprimidos, em reação constante contra a situação atual, nada esperam das autoridades, mas que criam suas próprias condições de luta e retiram de si mesmos seus meios de ação, sem intermediários ou representantes.

6. Apoio mútuo

Para se criar uma outra política, é necessário também criar-se novas relações, baseadas em outros princípios morais que não são aqueles da sociedade capitalista e estatista. Um dos princípios essenciais para a nossa ação é o que chamamos de apoio mútuo, que nada mais é do que a cooperação e a solidariedade entre os indivíduos que se associam livremente para lutarem pela sua liberdade. O apoio mútuo é antagônico à competição, que é a base da moral capitalista.

O Dever de honra, por Malatesta

O texto aqui presente de Errico Malatesta, apesar de escrito há mais de cem anos, se encaixa muito bem nos nossos dias. Tendo em conta os elementos específicos do contexto em que Malatesta escreveu estas palavras, seu principal argumento se mantém: toda propaganda anti-eleitoral deve vir acompanhada de um trabalho cotidiano e paciente. Por isso, nesse pós-eleição reafirmamos: não basta não votar, é preciso se organizar!

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O Dever de honra
Publicado em L’Agitazione, Roma – 22 de setembro de 1901.
(Retirado de “Anarquistas, Socialistas e Comunistas”, Ed. Imaginário, 2014)

Acabaram as eleições.

Nós – quer dizer, todos os companheiros – fizemos tudo o que podíamos fazer para explicar ao povo esta trapaça que é a luta eleitoral, assim como seus danos. E trabalhamos bem. Mas agora nos compete um outro dever, e mais importante: mostrar – pelos fatos, obtendo resultados – que nossa tática é melhor do que a dos parlamentaristas; e que não somos simplesmente uma força negativa, mas queremos ser e somos uma força ativa, operante, eficaz, na luta pela emancipação do proletariado.

Combatemos os socialistas parlamentares e temos razão porque, em seu programa e em sua tática, há o germe de uma nova opressão. Se algum dia eles triunfassem, o princípio de governo que conservam e reforçam destruiria o princípio de igualdade social e abriria uma nova era de luta de classes. Mas, para ter o direito de combate-los, devemos fazer melhor do que eles.

Ter razão em teoria, sonhar com ideais superiores, criticar os outros, prever as consequências de programas incompletos e contraditórios, isto não basta. Mais ainda, se tudo se limita à teoria e à crítica e não serve de ponto de partida a uma atividade que procure e que crie as condições para pôr em obra um programa melhor, nossa ação corre o risco, ao contrário, de ser nociva na prática, entravando a ação dos outros, e isto para a grande vantagem de nossos inimigos comuns.

Impedir, por nossa propaganda, que o povo envie ao Parlamento, socialistas e republicanos (levando em conta que aqueles que são os mais acessíveis à nossa propaganda são precisamente os que, sem nós, votariam em candidatos antimonarquistas) é muito bom, se soubermos fazer, daqueles que arrancamos do fetichismo da urna, combatentes conscientes e ativos da emancipação verdadeira e total.

Caso contrário, teríamos servido, serviríamos aos interesses da monarquia e dos conservadores.

Pensemos todos nisto. Trata-se do interesse de nossa causa, de nossa honra, como homens e partido.

A propaganda isolada, ocasional, que frequentemente é feita com o objetivo de acalmar sua consciência, ou para dar simplesmente livre curso à sua paixão pela discussão, esta propaganda não serve para nada ou quase nada.

Ela é esquecida, perde-se antes que seus efeitos possam somar-se uns aos outros e tornar-se fecundos, tendo em vista as condições de inconsciência e de miséria das massas e, por outro lado, todas as forças que nos são contrárias. O terreno é muito ingrato para que sementes lançadas ao acaso possam germinar e produzir raízes.

É necessário um trabalho contínuo, paciente, coordenado, adaptado aos diferentes meios e às diferentes circunstâncias. É preciso que cada um de nós possa contar com a cooperação de todos os outros, e que em todos os lugares onde um grão tiver sido lançado, não falte o trabalho assíduo do jardineiro para cuidar dele e protege-lo até que ele tenha se tornado uma planta capaz de viver por si mesma e, por sua vez, espalhe novos grãos fecundos.

Há, na Itália, milhões de proletários que ainda são instrumentos cegos nas mãos dos padres; há milhões que odeiam o patrão com um ódio intenso, mas que estão persuadidos de que não se pode viver sem patrões e não sabem imaginar nem desejar outra emancipação senão a de tornar-se patrões, por sua vez, e explorar seus companheiros de miséria.

Há regiões imensas – exatamente a maior parte da superfície da Itália – onde nossa palavra jamais chegou, ou não deixou marcas sensíveis caso tenha lá chegado.

Existem organizações operárias, poucas, é verdade, às quais somos estranhos.

Desencadeiam-se greves onde, não preparados ou tomados de surpresa, não podemos nem ajudar os operários no combate que eles realizam, nem aproveitar a excitação dos espíritos para nossa propaganda.

Eclodem motins, quase insurreições, e nenhum de nós o sabe.

Há também a perseguição; aprisionam-nos, deportam-nos às centenas e aos milhares e encontramo-nos impotentes, não somente para reagir, mas até mesmo para atrair publicamente a atenção para as infâmias das quais somos vítimas.

Ao trabalho, companheiros! A tarefa é grande. Ao trabalhos, todos!

ABSTENCIONISMO por LUIGI BERTONI (Enciclopédia Anarquista)

ABSTENCIONISMO por LUIGI BERTONI (Enciclopédia Anarquista)IMAGEM ABSTENCAO ATIVA BERTONI SITE

Tradução do espanhol: Rosa Silva
Outubro de 2014 – Biblioteca Terra Livre

Apresentação

Traduzimos um verbete da tão comentada Enciclopédia Anarquista, organizada por Sebatién Faure, resultado de um grande esforço coletivo. Inspirado nos grandes eciclopedistas do século XVIII, Faure anuncia que a obra não é uma empreitada comercial e sim “uma obra de educação libertária”. A ela os anarquistas podem recorrer para obter informações e opiniões sobre os mais variados temas, sempre numa perspectiva libertária.
Por ocasião da Campanha Existe Política Além do Voto de 2014, realizada por uma coalizaão de grupos aanrquistas e autônomos em todo o país, decidimos disponibilizar o verbete sobre abstenção eleitoral, escrito pelo anarquista italiano Luigi Bertoni. Percebemos que muitos candidatos oportunistas (não que haja algum político que não seja) estão se utilizando das manifestações ocorridas pelo país desde junho de 2013 como trampolim eleitoral. O mais absurdo é ver o candidato representante dos interesses doas empresários, presidente da FIESP, falando com o maior cinismo e cara de pau que votar nele seria uma espécie de continuação das lutas ocorridas nas ruas, lutas que, aliás, é bom recordarmos, foram duramente reprimidas pelas forças policiais do estado, o mesmo que tal canalha pretende ocupar agora.
Mas acreditamos que essa falácia até os mais desavisados percebem. Mas há uma corja de malandros que se dizendo “de esquerda” reivindicam para si o rótulo de o candidato “das ruas” ou que apresentam pautas próximas às que surgiram tantos nas mobilizações contra o aumento da tarifa como nos atos contra realização da copa do mundo no Brasil. Esses pedem os votos dos manifestantes, usam palavras de ordem das ruas (bem, mas até o TSE usa o seu “#vem pra urna”, numa ridícula alusão e despolitização do grito “vem pra rua”) e dizem que é necessário continuar a “mudança”. Inelizmente, muitos inocentes caem nesse discurso. E para nossa surpresa até pessoas que estavam de fato nas lutas nas ruas, se organizando de maneira horizontal, tentando mudar as coisas pela ação direta e descentralizada da luta política acreditam que a via parlamentar pode ser uma “alternativa” para solucionar os problemas estruturais de uma sociedade hierárquica e capitalista. E pasmém, até ditos “anarquistas” acabam, sabe-se lá porque mecanismo psicológico, votando, sob argumentos totalmente inexplicáveis e injustificáveis.
Há anos a Campanha Existe Política Além do Voto vem demosntrando sua posição que pode ser lida em seu manifesto no site alemdovoto.milharal.org. Porém, nunca é demais reforçar os motivos pelos quais, nós anarquistas, somos por princípio abstencionistas, nesta e em qualquer outra eleição que se apresente diante de nossos olhos.
Para explicar melhor este tema recorremos ao verbete de Luigi Bertoni, traduzido pela primeira vez em português. Bertoni nasceu em Milão na Itália em 1872, foi tipógrafo de profissão e um dos maiores organizadores de sindicatos na Suiça. Fundou o jornal bilíngue (italiano/francês) Il Risveglio/Le Réveil em Genebra, foi preso em 1918 acusado de ter lançado uma bomba (acabou inocentado) e lutou na Revolução Espanhola em um front formado por italianos. Foi um ferrenho crítico da participação anarquista no governo republicano espanhol e autor de centenas de artigos em jornais anarquistas e livros de temáticas libertárias. Foi um dos colaboradores que ajudaram Sebastién Faure a escrever a monumental obra em 4 volumes, a Enciclopédia Anarquista, publicada entre 1925 e 1934. Faleceu em Genebra no ano de 1947.
Para explicar em poucas linhas o propósito da Campanha que os anarquistas travam contra o sistema eleitoral-parlamentar façamos nossas as palavras de Bertoni: “Negar-se a ser eleitor significa, para nós, reivindicar o direito de exercer uma intervenção direta, constante e decisiva, em todas as manifestações da vida pública”. E essa intervenção não faz através do voto, mas sim pela ação direta, construindo a autogestão e o federalismo anarquista.

Biblioteca Terra Livre

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ABSTENCIONISMO, s.m.
Por Luigi Bertoni
(Verbete da Enciclopédia Anarquista, organizada por Sebastién Faure)

“Doutrina que preconiza a abstenção em matéria eleitoral”, diz o dicionário Larousse. Fanfani o define com mais precisão: “Não querer exercer os direitos olíticos nem participar das tarefas públicas”. De toda maneira, estas definições não dizem nada em si sobre a razão, o significado e o alcance da abstenção. Uma nota do mesmo Larousse nos permite nos permite estabelecê-las contraditoriamente. Diz assim: “A anstenção política, que repousa na negligência ou na indiferença, prova um esquecimento egoísta e reprovável dos deveres de cidadão. Essa abstenção é às vezes praticada sistematicamente como maneira de protesto, seja contra o goberno estabelecido ou seja contra uma forma de sufrágio que não oferece as garantias suficientes”.
Não é por negligência ou indiferença, nem tampouco comomprotesto contra tal ou qual governo ou modo particylar de sufrágio o motivo pelo qual nós anarquistas somos abstencionistas: é por uma questão de princípio.
Nós não admitimos uma pretendido direito de maioria. Antes de tudo devemos assinalar que foi matematicaente provado que nenhum parlamento nem nenhum governo representou jamais, até hoje, a maioria efetiva de um país. E mesmo que este fato se produzisse, nós discutiríamos sempre com tal parlamento e tal governo o direito de submeter as minorias à suas leis. Sem pretender que as maiorias não tenham nunca razão, para rechaçar todo direito maioritário, basta afirmar que as minorias têm razão frequentemente, ou simplesmente que elas podem também ter razão.
Fora o caso particular de não poder escolher mais que entre duas decisões e de impossibilidade material de aplicar livremente as duas simultameamente, a minoria tem, segundo a nossa opinião, uma liberdade de ação igual à da maioria. Naturalmente, o direito da minoria não será inferior ao da maioria mais que na medida em que sejam suas forças de realização.
Acrescentamos que nós não reivindicamos tão somente o direito do grupo minoritário igual ao do grupo maioritário, mas também um direito individual limitado unicamente pelos poucos meios que representa um só indivíduo por si mesmo.
Há nisso uma razão fundamental. Toda invenção, descobrimento ou nova verdade, em todos os domínios da vida, sempre se deveram à estreita cooperação de grupos reduzidos, apesar de esses grupos e esses indivíduos tenham se aproveitado, como é lógico, do conjunto de conhecimentos humanos sem os quais o novo passo dado seria inconcebível. Nada é evidentemente mais nocivo ao progresso, e nada poderia retarda-lo tanto, como fazer depender previamente da maioria a aplicação da conquista. A mais ampla autonomia e o experimento sem travas para os diferentes ensaios, tentativas e aplicações, são as condições indispensáveis para toda realização audaz e fecunda. Condições em oposição formal a todo pretendido direito de maioria. Por outro lado, se os inovadores caem em erro, nadamelhor que a experiência para prova-lo, depois a queal poderia abandonar, modificar suas tentativas.
O adágio “os ausentes são sempre culpados” não pode aplicar-se ao abstencionismo anarquista. E mais: deve aplicar-se com mais razão aos eleitores que aos elegidos. Não é um paradoxo o que formulamos, mas sim a verdade fácil de demonstrar. De fato: qual é a abstenção que mais devemos sentir, a dos poucos minutos necessários para votar ou a de todos os dias do ano? Porque, em suma, o direito de votar implica a renúncia de ocupar-se das tarefas públicas durante período determinado, em cujo decurso o elegido se encarregada de ocupar-se totalmente no lugar do eleitor, quem se transforma no “ausente sempre culpado”. E os fatos provam que os eleitores o são, sem dúvida nenhuma.
Evidentemente, o abstencionista por negligência ou indiferença se encontra no mesmo caso, mas é muito diferente do anarquista, o qual não quer deixar de participar em todos os lugares que seu futuro seja discutido e se encontre em jogo, porque quer fazer-se presente para pesar, com o peso de toda sua personalidade, sobre as decisõses que possam adotar-se.
Só é logicamente anarquista o abstencionismo quando significa, por um lado a negação de toda autoridade legislativa e, por outro, a reivindicação – e aplicação na medida em que seja possível – do princípio de fazer por si mesmo tudo aquilo que lhe diz respeito e que por próprio impulso se possa realizar.
Os “deveres do cidadão” – se é que há deveres – não podem reduzir-se de maneira alguma à obrigação de depositar um papel dentro de uma urna. Esses deveres devem aplicar-se em todo momento e em toda ocasião que sejam necessários. Portanto, o voto não significa, em resumo, mais do que delegar ao outro o próprio dever, o que é uma verdadeira incongruência.
Tanto se se considera a participação nas tarefas públicas como um direito ou como um dever, em nenhuma das formas ela poderia dar lugar a uma delegação, a menos que se negue na prática aquilo que se afirmou teoricamente.
Vejamos: Pode o homem cultivar-se, instruir-se, melhorrar e fortificar-se por delegação? Não, já que se pressupõe, acima de tudo, uma atividade pessoal do indivíduo, que pode ser mais ou menos favorecida por outros, mas sempre segundo o adágio que diz: “Ajuda-te e serás ajudado”. “A superstição – já disse Gabriel Séilles muito acertadamente – Consiste em pedir a uma potência desconhecida, ou em esperar dela, aquilo que cada um não se sente capaz”. Não é isso, precisamente, o que continuam fazendo as multidões eleitorais, seguindo aos malandros da política?
Podemos imaginar pior educação que a que consiste em descarregar sobre alguns indivíduos o cuidado de tratar as questões em que estão em jogo o interesse de todos, cuja solução poderá ter as maiores consequências para a humanidade?
Nos abstemos de insistir sobre as torpezas da política e dos políticos, sobre o espetáculo repugnante que sempre proporciona o parlamentarismo. E mesmo que todos os eleitos fossem homens probos, o que é impossível, nós não deixaríamos por isso de ser os adversários de um sistema que mantém sob um estado de tutela, de minoria, de inferioridade, a maior parte dos cidadãos.
Negar-se a ser eleitor significa, para nós, reivindicar o direito de exercer uma intervenção direta, constante e decisiva, em todas as manifestações da vida pública, o que não se pode deixar nas mãos de uns poucos indivíduos.
Nosso abstencionismo não significa, pois, uma cômoda almofada onde pode descansar nossa preguiça, mas pressupõe toda uma ação de resistência, de defesa, de rebeldia e de realização de todos os dias.
Os socialistas parlamentares pretendem dizer que, assim, nós engrossamos o caldo da burguesia. Examinemos, pois, os fatos com detalhes.
Todos concordamos que o parlamentarismo é uma instituição claramente burguesa. Participar nesta instituição é contribuir ao seu funcionamento, ao seu jogo. É possível transformar esse jogo de burguês em socialista? Os fatos respondem sem exceção que não.
A razão é muito simples: ou a maioria continuará sendo burguesa, pelo que é certo que imporá seu próprio jogo à maioria socialista e, em tal caso, tudo está perdido de antemão, e obstinar-se em jogar com os burgueses é incompreensível, a menos que admitamos que os jogadores socialistas, pedindo tudo em nome do povo, podem, porém, ganhar algo para eles mesmos, ou então a maioria será socialista, cujo caso é evidente que o jogo parlamentar, cuja origem, desenvolvimento e objetivo são estritamente burgueses, deverá ser substituído por instiruições novas, por meio das quais as massas trabalhadoras não podem ser enganadas.
Praticamente, a história de todas as votações e das eleições, particularmente na Suíça, onde se encontra o sistema mais desenvolvido e aperfeiçoado, nos ensina que a burguesia alcança sempre seus fins, apesar de todas as “consultas populares”. Por outro lado, não lhes faltam os meios para alcançar ilegalmente o que não se pode conseguir legalmente. A forma de aplicação da jornada legal de 8 horas deveria ser uma lição interessante para os eleitores. E assim sucede, naturalmente, com todas as leis sediciosas de proteção aos operários. E nós somos abstencionistas precisamente porque o sufrágio universal é um jogo oligárquico por excelência, inclusive à margem de todas as trapaças que lhe são familiares.
Nos dias de eleições, os candidatos, eternos banqueiros manipuladores, gritam: “Ao jogo!”. Os ingênuos que votam verão como eles recolhem as cédulas eleitorais e escutarão as mesmas vozes gritar: “Já não se joga mais!” E este jogo de poder no qual, como em todos os jogos, é o banqueiro que corta o baralho quem ganha, pode durar eternamente. Se os jogadores chegam a iludir-se alcançando algum pequeno ganho , muito de vez em quando, perderão logo a ilusão, porque esse ganho lhe será retirado com juros.
Existe um ponto sobre o qual estamos convencidos de não nos equivocarmos. É quando aconselhamos à classe trabalhadora a abstenção do jogo eleitoral, com a qual sempre se faz engrossar o caldo dos representantes do Estado.
Para nós este princípio se aplica tanto às eleições para as câmaras legislativas, como para os conselhos cantonais de província ou de mincípio, assim como também às eleições dos poderes executivos e judiciários onde quer que se realizem. Aplicamos, além disso, a todas as eleições referentes a direitos através de referendos, de iniciativas e da legislação dita direta.
Na impossibilidade de refutar o fundamento básico de nossas objeções, os partidários do voto exclamam: “Sua crítica é estéril e sem sentido. Diga-nos o que se deve fazer”.
Observemos primeiro este fato: embora nós possamos ou não dizer o que há de fazer, nossa opinião não muda em nada a comprovação de que com a cédula do voto o resultado é nulo. E como esta verdade é incontestável, não é para nós que se deve formular a pergunta, mas sim que cada indivíduo formule-a a si mesmo.
Apesar de o abstencionismo anarquista não ter obtido como resultado mais do que a pergunta “o que fazer?”, proposta de forma imperiosa e universalmente, o valor da mesma seria já muito elevado.
Com o sistema eleitoral, a grande massa dos eleitores adere a alguns quantos eleitos. Isso resulta que “quem vota o faz sobretudo com a ideia mais ou menos consciente de abster-se, imediatamente depois, de ocupar-se das tarefas da vida pública”. Para isso se descarrega sobre o eleito. O voto, mais que uma participação na vida pública, é uma renúncia de ocuper-se dela. Cada eleitor pensa que melhor será que outro o faça por ele.
Entretanto, a coisa pública é tão imensa, tão complexa e árdua que nunca é demais a participação de todas as inteligâncias, capacidades e forças para servi-la devidamente. Mas isto se faz fora do Parlamento, com o qual a utilidade deste é bem duvidosa, ou melhor, o Parlamento só intervém para ordenar o que não sabe fazer a quem sim o sabe, com o que sempre estamos sob o reinado sistemático da incompetência.
Dado que cada indivíduo só pode responder a pergunta “o que fazer?” apartir do que conhece, podemos considerar o Parlamento como um absurdo, pois que deve, por definição, responder a todas as necessidades que implica a vida social.
As frases vagas dos programas eleitorais não responderam jamais à temímel pergunta “o que fazer?”. É uma resposta que nenhuma maioria eleitoral poderá dar jamais, mas cada indivíduo pode e deve dar com o quanto conhece das formas infinitas de trabalho humano.
E precisamente porque o voto não é mais que uma artimanha para maioria escapar da pergunta “o que fazer?”, é que nós não o queremos.

Recusa ao Estado, de Union Régionale Rhône-Alpes da Federação Anarquista Francófona

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Trata-se de uma gigantesca escroqueria: as classes dominantes construíram os aparelhos de Estado para servirem a seus interesses e não para a sociedade. O Estado é um instrumento de repressão, de controle e gestão, que opera contra nós e que limita ou esmaga nossas iniciativas de auto-organização.

Para que a sociedade funcione, não precisamos ser dirigidos, e, recusando o Estado, propomos o federalismo libertário e a autogestão, quer dizer, modos de funcionamento que dão ao individuo a possibilidade de coordenar as atividades sócias, tratando de iguais a iguais.

Por nosso antiautoritarismo, somos conduzidos a nos diferenciar dos democratas. A democracia é etimologicamente a ideia do poder do povo, mas historicamente é a referência à democracia ateniense (na qual havia escravos!) ou a democracia atual, que se desenvolveu desde a Revolução americana e afirmada com a Revolução francesa. Para evitar cair na armadilha do jogo de linguagem, podemos dizer que o problema fundamental é o da delegação de poder: ser democrata é pensar que o povo deve eleger seus governantes (pelo sufrágio universal)

O “democrata” permanece, pois, no esquema dirigentes/dirigidos. Se a ditadura é o pior dos sistemas políticos, convocados a intervir diretamente na “vida política do país”? Ora, é uma evidência, a maioria nem sempre tem razão.

Entregar-se sem condição a seu juízo para tomar decisões sobre tudo é extremamente perigoso: iremos aceitar votar sobre questões como a pena de morte, a expulsão dos imigrantes (ou filhos de emigrantes), o direito de as mulheres trabalharem? Não podemos aceitar a submeter a um voto o que não é negociável e o que conspurca o princípio da justiça social!

Isso posto, não somos sistematicamente opostos ao voto.

Podemos recorrer a ele for concebido como um modo de decisão aceito por todos, a fim de ter, em um dado momento, indicações quanto as posições de cada um, resolver rapidamente questões técnicas, escolher entre diferentes opções econômicas de produção.

Texto extraído da obra: O Anarquismo hoje, Um projeto para Revolução Social.

O Governo não presta!

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(Imagem extraída do jornal A Plebe, ano II, nº14, 24/05/1919)

Eu estou cansado de saber disso, mas a maioria não se convence que sem governo é melhor. Desde criança sinto um eterno zumbido no ouvido de que o governo não presta.

Hoje estou com perto de 50 anos e o zumbido de que o governo não presta aumentou.

Que diabo! Uma coisa que não presta bota-se fora, não se deve aceitar! Vamos todos a casa: mas aí que poderia governar-se por si? Eu!… Eu mesmo podia me governar muito bem. Porque não? Ora essa! Então não sei me dirigir por mim mesmo? O governo fornece-me algumas muletas? Faltaria só isso! Não saber-me governar! É o que venho fazendo há cinqüenta anos! Pois os animais se governam muito bem por si, quanto mais um de nós que tem mais recursos e mais fácil o pão.

Vamos ser razoáveis. Sempre dispensei e dispensaria perfeitamente o governo. Nunca o consultei para nada, nem lhe solicitei ou recebi dele qualquer favor ou benefício. Já vêem, pois, que carinho me merece. O governo, o Estado, é que não procede reciprocamente comigo. Mete-se em todos os meus negócios, atrapalha-me de todo jeito quer saber quanto ganho, o que faço, de que vivo, e tira de mim o lucro do meu trabalho em licenças e impostos e em nome de instituições que eu não conheço, deixando-me só o que preciso para não pedir esmola.

Posso eu sozinho me opor à vontade do governo? Não ?! E por que? Impele-me pela força armada. Aí é que está. Mas não digam que não saberia conduzir-me sem governo. Não sou só eu que não quero, somos todos. Porque é que se formam partidos políticos de todas as cores? Não é para combater o governo? Aliança Liberal, o Partido Democrático, o Partido Católico, o Partido Socialista, o Partido Comunista e Cia., não são ou foram contra o governo?

O governo não presta. Como vedes não é só o anarquista que não quer governo, somos nós todos. Vamos então ser sinceros: quem é que gosta de ser governado? Além de tudo, o governo é um ente escravo de si mesmo, e quais garantias têm os governantes? As mesmas dos governados. O pau que dá no Chico dá na Joana! O governo é uma coisa tão absurda que não garante nem a si. Pergunte a Washington Luis e seu colega Afonso XIII e eles e outros poderão responder.

Tudo é questão de palavras. Estou convencido de que todos querem o mesmo que eu quero, só que à maioria falta a coragem de assumir a responsabilidade das próprias convicções e perder o amor aos privilégios adquiridos e nada mais. Mas que o governo garanta alguma coisa de perene e eterno, todos estão cansados (como nós) de saber que isso é mentira, que o governo não garante coisa nenhuma, pois até ele é provisório e passageiro como uma estrela errante.

Por isso digo-vos: o governo não presta! E com igual razão os da última moda: bolchevista ou comunista, fascista ou socialista. Os nomes pouco importam. É que constituem um só conteúdo, uma coisa só: governo (ou desgoverno) e sempre pela força.

Por Armandinho

* Texto retirado do periódico libertário A Plebe (Nova Fase), N°. 21, de 22 de abril de 1933.

O Governo Representativo, de Piotr Kropotkin

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Parte I

Quando observamos as sociedades humanas nos seus traços essenciais, abstraindo das manifestações secundárias e temporais, constatamos que o regime político a que estão submetidas é sempre a expressão do regime econômico que existe no seio da sociedade. A organização política não se modifica pela vontade dos legisladores; pode, é verdade, mudar de nome, pode apresentar-se hoje sob a forma de monarquia, amanhã sob a da república, mas não sofre uma modificação equivalente; adapta-se, harmoniza-se com o regime econômico, de que é sempre a expressão e, ao mesmo tempo, a congregação, o sustentáculo.

Se às vezes, na sua evolução, o regime político dum tal país está atrasado comparativamente com a modificação econômica que nele se opera, é então, bruscamente alterado, modificado, remodelado, de maneira a ajustar-se ao regime econômico que se estabeleceu. Mas, por outro lado, se sucede que, em virtude duma revolução, o regime político vai além da modificação econômica, fica em estado de letra morta, de fórmula, inscrita nas cartas, mas sem aplicação real. Assim, a declaração dos Direitos do Homem, fosse qual fosse o seu papel na história, é hoje apenas um documento histórico, e essas belas palavras de Liberdade , Igualdade e Fraternidade permanecerão como um sonho ou uma mentira inscrita nas paredes das igrejas e das prisões, enquanto a liberdade e a igualdade se não tornarem a base das relações econômicas. O sufrágio universal seria tão inconcebível numa sociedade baseada na servidão, como o despotismo numa sociedade que tivesse por base o que se chama a liberdade da exploração.

As classes operárias da Europa ocidental compreenderam-no bem. Sabem ou advinham que as sociedades continuarão a ser esmagadas sob as instituições políticas existentes, enquanto o regime capitalista de hoje não for destruído. Sabem que essas instituições, embora revestidas de belos nomes são a corrupção e o domínio do mais forte erigidos em sistema, o estrangulamento de todas as liberdades e de todo o progresso; sabem que o único meio de sacudir esses empecilhos seria estabelecer as relações econômicas sobre um novo sistema, o da propriedade coletiva. Sabem finalmente que para realizar uma revolução política profunda e durável, é preciso realizar uma revolução econômica.

Mas por causa mesmo da ligação íntima que existe entre o regime político e o regime econômico, é evidente que uma revolução no modo de produção e de repartição dos produtos não se poderia operar, se não fizesse a par duma modificação profunda dessas instituições que se designam geralmente sob o nome das instalações políticas. A abolição da propriedade individual e da exploração que dela é a conseqüência, o estabelecimento do regime coletivista ou comunista seriam impossíveis se quiséssemos conservar os nossos parlamentos e os nossos reis. Um novo regime econômico exige um novo regime político, e esta verdade é também compreendia por toda a gente, que de fato o trabalho intelectual que se opera hoje nas massas diz respeito indistintamente aos dois aspectos da questão a resolver. Raciocinando sobre o futuro político, e ao lado das palavras Coletivismo e Comunismo, ouvimos as palavras : Estado Operário, Comuna Livre, Anarquia, ou então Comunismo Autoritário ou Anarquista, Comuna Coletivista.

Regra geral: “Quereis estudar com proveito? Começai por imolar um a um , os mil preconceitos que vos ensinaram “! – Estas palavras, pelas quais um astrônomo célebre começava os seus discursos, aplicam-se a todos os ramos dos conhecimentos humanos: muito mais ainda às ciências sociais do que as ciências físicas, porque logo no início destas, nos defrontamos com uma quantidade de preconceitos herdados dos tempos passados, de idéias absolutamente falsas, lançadas para melhor iludir o povo, de sofismas minuciosamente elaborados para falsificar o juízo que o povo possa formular. Temos assim um verdadeiro trabalho preliminar a fazer para marchar com segurança.

Ora, entre esses juízos, há um que merece sobretudo a nossa atenção, porque não só é a base de todas as nossas instituições políticas modernas, como aparece em todas as teorias sociais postas em destaque pelos reformadores franceses. É o da fé num governo representativo, num governo por procuração.

No fim do século XVIII, o povo francês destruía a monarquia e o último dos reis absolutos expiava no cadafalso os seus crimes e o dos seus antecessores.

Parecia que precisamente nessa época, desde que tudo que a revolução fez de bom, de grande, de duradouro, foi realizado pela iniciativa e a energia dos indivíduos ou dos grupos, graças à desorganização e a fraqueza do governo central, parecia, digo, que essa época o povo francês não procuraria voltar a submeter-se ao jogo dum novo poder, baseado nos mesmos princípios do anterior, ou mesmo muito mais forte porque não estaria contaminado pelos vícios do poder derrubado.

Mas não se deu assim. Sob a influência de preconceitos governamentais e deixando-se enganar pela aparência de liberdade e bom estar que davam – dizia-se- as instituições inglesa e americana, o povo francês apressou-se a dar-se a si mesmo uma constituição, depois constituições, que alterou por várias vezes, que variou até ao infinito nas suas particularidades, mas todas baseadas neste princípio: o governo representativo. Monarquia ou república, pouco importa! O povo não se governa por si mesmo: é governado por representantes escolhidos melhor ou pior. Proclamará a sua soberania, mas apressar-se-á a abdicar dela. Elegerá, bem ou mal, deputados que vigiará ou não, e serão esses deputados que se encarregarão de regular a imensa diversidade de interesses desencontrados, de relações humanas tão complicadas no seu conjunto, sobre toda a superfície da França.

Mais tarde em todos os países da Europa continental dá-se a mesma evolução. Todos destroem uns após outros as suas monarquias absolutas, e todos se lançam no caminho do parlamentarismo. Até aos dois despotismos do Oriente não há país que não siga este caminho: a Bulgária, a Turquia e a Sérvia tentam o regime constitucional; na própria Russia tenta-se sacudir o jogo duma camarilha para o substituir pelo jogo temperado duma assembléia de delegados.

E, o que é pior, a França, inaugurando novos caminhos, cai apesar disto nos mesmos erros. O povo desgostoso com uma triste experiência da monarquia constitucional, destrói-a e apressa-se no dia seguinte a eleger uma assembléia a que não muda senão o nome e confia-lhe o cuidado de governar…para que o venda a um bandido que chamará a invasão do estrangeiro às planícies férteis da França.

Vinte anos mais tarde cai ainda no mesmo erro. Vendo a cidade de Paris livre, abandonada pela tropa e pelos poderes, não trata senão de experimentar uma nova forma que facilitasse o estabelecimento de um regime econômico. Satisfeito por ter mudado o nome de Império pelo de República e este pelo de Comuna, apressa-se a pôr em prática uma vez mais, no seio da Comuna, o sistema representativo. Falsifica a idéia nova pela herança cancerosa do passado. Abdica a sua própria iniciativa nas mãos de uma assembléia de pessoas eleitas mais ou menos ao acaso, e confia-lhe o trabalho dessa organização completa das relações humanas que podia ter dado à Comuna a força e a vida.

As constituições periodicamente esfarrapadas em pedaços voam como folhas mortas caídas ao rio por um vento de outono! Não importa, volta-se sempre aos primeiros amores; rasgada a décima sexta constituição, faz-se uma décima sétima!

Finalmente, mesmo em teoria vemos reformadores que, em matéria econômica, não se detém diante duma modificação completa das formas existentes, que se propõe alterar completamente a produção e a troca e abolir o regime capitalista. Mas quando se trata de expor – em teoria bem entendido-o seu ideal político, não ousam tocar no sistema representativo; sob a forma de Estado Operário ou de Comuna Livre, procuram sempre conservar custe o que custar, esse governo por procuração. Todo um povo, toda uma raça se aferra ainda encarniçadamente a esse sistema.

Felizmente vai-se fazendo luz sobre este assunto. O sistema representativo não está na prática unicamente nos países que outrora mal conhecíamos. Funciona e tem funcionado na grande arena da Europa Ocidental, em todas as suas variedades, sob todas as formas possíveis, desde a monarquia temperada até à Comuna revolucionária; e vai-se compreendendo que, acolhido com grandes esperanças, em toda a parte se tornou um instrumento de intrigas, de enriquecimento pessoal ou embaraço à iniciativa e ao desenvolvimento ulterior. Vai-se compreendendo que a religião da representação tem o mesmo valor que a das superioridades naturais e dos personagens reais. Mais do que isso, começa-se a compreender que os vícios do governo representativo não dependem só das desigualdades sociais: que aplicado num meio em que todos os homens tenham igual direito ao capital e ao trabalho produziria os mesmos resultados funestos. E pode-se facilmente prever o dia em que esta instituição, nascida, segundo a feliz expressão de J. S. Miel, do desejo de se garantir contra o bico e as garras do rei dos abutres, cederá o lugar a uma organização política nascida das verdadeiras necessidades da humanidade e da concepção de que a melhor maneira de ser livre, é não ser representado, não abandonar as coisas, todas as coisas, à Providência ou a eleitos, mas fazê-las para si mesmo.

Esta conclusão surgirá também, nós o esperamos, ao próprio leitor, depois de termos estudado os vícios intrínsecos do sistema representativo, inerente ao próprio sistema, sejam quais forem o nome e a extensão dos agrupamentos humanos no seio dos quais se aplica.

Parte II

“Previnidos pelos nossos costumes modernos contra os prestígios da realeza absoluta – escrevia Agostinho Thierry em 1828 – há outros dos que nos devemos nos acautelar, os da ordem legal e do regime representativo”1 . Bentham dizia pouco mais ou menos a mesma coisa. Mas nessa época as suas advertências passavam despercebidas. Acreditava-se então no parlamento, e respondia-se a estas críticas com este argumento, bastante plausível na aparência: “O reqime parlamentar não disse ainda a sua última palavra: não deve ser julgado enquanto não tiver por base o sufrágio universal”.

Mais tarde o sufrágio universal introduziu-se nos no nossos costumes. Depois de se lhe ter oposto durante muito tempo, a burguesia acabou por compreender que ele não comprometeria em nada a sua dominação, e decidiu aceitá-o. Nos Estados Unidos o sufrágio universal funciona já há quase um século livremente; estabeleceu-se também na Franca e na Alemanha. Mas o regime representativo não mudou: ficou o que era no tempo de Thierry e de Bentham; o sufrágio universal não o melhorou, os seus, defeitos tornaram-se até maiores ainda. Ë em virtude disso que hoje não são já os revolucionários como Proudhon que o crivam com a sua crítica; são já os moderados como Mill , como Spencer , que clamam: “Fora o parlamentarismo”! Pode-se apreciá-lo publicamente, e, baseando-se em fatos geralmente conhecidos e reconhecidos poder-se-iam neste momento escrever volumes sobre os inconvenientes, com a certeza de encontrar eco na grande massa de eleitores. O governo representativo está julgado – e condenado.

Os seus partidários – há-os ainda de boa fé, embora os não haja de boa reflexão – não deixam de fazer valer os serviços que, segundo eles, nos prestou essa instituição. A ouvi-los, é ao regime representativo que devemos as liberdades Políticas que possuímos hoje e desconhecidas no tempo da monarquia absoluta. Mas não é isso tomar a causa pelo efeito, ou antes um dos efeitos simultâneos pela causa?

Não foi o sistema representativo que nos deu, nem mesmo garantiu, as poucas liberdades que conquistamos no último século. Foi o grande movimento do pensamento liberal, resultante da revolução, que as arrancou aos governos, ao mesmo tempo que lhes arrancou a representação nacional; foi ainda esse espirito de liberdade, de revolta, que soube conservá-los contra até os embaraços contínuos dos governos e dos próprios parlamentos. Por si mesmo o governo o representativo não dá liberdades reais, adapta-se admiravelmente ao despotismo. As liberdades tem que ser arrancadas da mesma maneira que aos reis absolutos: e uma vez arrancadas é preciso defende-las contra o parlamento da mesma maneira que outrora contra um monarca, dia a dia, palmo a palmo, sem nunca desarmar, o que não se consegue senão quando há no país uma classe forte, ciosa das suas liberdades e sempre pronta a defende-las pela agitação extra-parlamentar contra a menor usurpação. Onde esta classe não existe ou onde não tem unidade de defesa, as liberdades políticas não existem haja ou não uma representação nacional. A própria Câmara se torna uma Ante-Câmara do rei. São prova disso os parlamentos dos Balcans, da Turquía e da Áustria.

É muito usual citarem-se as liberdades inglesas e associarem-se facilmente, sem refiexão, ao Parlamento. Mas esquece-se por que processos, dum caráter puramente insurrecioial, cada uma dessas liberdades foi arrancada a esse mesmo Parlamento. Liberdade de associacção – tudo isto foi arrancado ao Parlamento à forca, pela agitação, prestes a transformar-se em revolta. Foi por meio das trades-unions, e a greve contra os editos do Parlamento e as execuções pela força no ano de 1813 foi saqueando, há apenas cinquenta anos, as fábricas que os operários ingleses obtiveram o direito de se associarem e de fazerem greve. Foi derrubando, com as barras das grades de Hyde-Park, a polícia que proibia a entrada que o povo, de Londres, recentemente ainda, afírmou contra um ministério constitucional, o seu direito de se manifestar na rua e nos parques da capital. Não é por meio de juntas parlamentares, mas pela agitação extra-parlamentar, é erguendo e juntando cem mil homens que protestam e clamam em frente das casas da aristrocacia ou do ministério, que a burguesia inglesa defende as suas líberdades. Quanto ao Parlamento, não faz senão usurpar continuamente os direitos políticos do país e suprimi-los com uma penada, tal qual como um rei, quando não encontra pela frente uma massa pronta a revoltar-se. Onde estão, por exemplo, a inviolabilidade do domicilio, e o segredo da correspondência, desde que a burguesia preferiu renunciar a esses direitos para obter do governo um simulacro de proteção o contra os revolucionários?

Atribuir aos Parlamentos o que é devido ao progresso geral, imaginar que basta uma Constituição para haver liberdade é pecar contra as regras mais elementares da crítica histórica.

Além disso, a questão não é essa. Não se trata de saber se o regime representativo oferece algumas vantagens sobre o regime duma criadagem explorando em seu proveito os caprichos dum senhor absoluto. Se se introduziu na Europa foi porque correspondia melhor à fase de exploração capitalista que atravessamos no século dezenove, mas que vai chegando a seu termo. Oferecia certamente mias segurança para o industrial e o comerciante aos quais dava o poder arrancado das mãos dos senhores.

Mas também a monarquia, a par de enormes inconvenientes, podia oferecer algumas vantagens sobre o regime dos senhores feudais. Também ela foi um produto necessário da sua época. Devemos nós, por isso permanecer sempre sob a autoridade dum rei e dos seus lacaios?

O que nos importa, homens do fim do século dezenove, é saber se os efeitos do poder representativo não são tamanhos e tão insuportáveis como o eram os do poder absoluto. Se os obstáculos que ele opõe ao desenvolvimento ulterior das sociedades não são, no nosso século, tão perturbadores como o eram os obstáculos opostos pela monarquia no século XVIII. Finalmente se um simples remendo representativo pode ser o bastante para a nova fase econômica cujo aparecimento entrevemos. Eis o que se deve estudar em vez de discutir o papel histórico do regime político da burguesa.

Posta pois a questão nestes termos, não há hesitaçã na resposta.

Certamente que o regime representativo – esse compromisso com o antigo regime que conservou ao governo todas as atribuições do poder absoluto, submetendo-o, bem ou mal, a uma fiscalização popular mais ou menos fictícia – fez o seu tempo. É hoje um entrave para o progresso. Os seus defeitos não resultam dos homens, dos indivíduos que estão no poder – são inerentes ao próprio sistema e são tão profundos que nenhuma modificação poderia adaptá-los às necessidades novas da nossa época. O sistema representativo foi a dominação organizada da burguesia e desaparecerá com ela. Para a nova fase econômica que se anuncia, devemos procurar um novo modo de organização política, baseado num princípio diferente do da representação. E a lógica dos fatos que o impõe.

Em primeiro lugar, o governo representativo participa de todos os defeitos inerentes a qualquer governo. Mas longe de os atenuar, acentua-os ainda mais e dá origem a outros novos.

Uma das mais profundas palavras de Rousseau sobre os governos em geral, aplica-se ao governo eletivo como a todos os outros. Para abdicar dos nossos direitos nas mãos duma assembléia eleita, não seria na verdade preciso que ela fosse composta de anjos, de seres sobrehumanos? E ainda que o fossem bem depressa nasceriam chifres e garras a esses seres etéreos, desde que eles começassem a governar o rebanho humano.

Semelhante neste ponto aos déspotas, o governo representativo – chame-se ele Parlamento, Convenção, Conselho da Comuna, ou tenha outro nome mais ou menos ridículo, seja nomeado pelos prefeitos de um Bonaparte ou arqui-livremente eleito por uma cidade insurgida, – o governo representativo procurará sempre alargar a sua legislação, reforçar sempre o poder, interferindo em tudo, matando a iniciativa do indivíduo e do grupo para as suplantar pela lei. A sua tendência natural, inevitável, será apoderar-se do indivíduo desde a sua infância e levá-lo de lei em lei, da ameaça a punição, do berço a cova, sem nunca o liberta-lo da sua vigilância. Viu-se alguma vez uma Assembléia declarar-se incompetente ela para o que for? Quanto mais revolucionária for, mais tratará de se meter em tudo o que não for da sua competência. Legislar sobre todas as manifestações da atividade humana, intervir nas menores particularidades da vida dos “seus súditos” – é a própria essência do Estado, do Governo. Criar um governo, constitucional ou não, é constituir uma força um fatalmente procurará apoderar-se de tudo, regulamentar todas as funções da sociedade, sem reconhecer outro freio além do que nós lhe poderemos opor de tempos a tempos pela agitação ou insurreição. O governo parlamentar – ele próprio disso deu a prova – não faz exceção á regra.

“A missão do Estado, dizem-nos para nos cegarem melhor, – é proteger o fraco contra o forte, o pobre contra o rico, as classes trabalhadoras contra as classes privilegiadas”. Nós sabemos perfeitamente como os governos tem desempenhado esta função: tem-na compreendido perfeitamente ao contrário. Fiel à sua origem, o governo tem sido sempre o protetor do privilégio contra os que dele procuram libertar-se. O Governo representativo organizou principalmente a defesa, com a conivência do povo, de todos os privilégios da burguesia comercial e industrial contra a aristocracia por um lado, e contra os explorados por outro – modesta, delicada para com uns, feroz contra os outros. É por isso que a mais insignificante das leis protetoras do trabalho, por mais anódina que seja, não pode ser arrancada a um parlamento senão pela agitação insurrecional. Basta lembrar as lutas que se tiveram de sustentar, da agitação que teve de se fazer, para obter dos parlamentos ingleses, do conselho federal sulco, das câmaras francesas, algumas péssimas leis sobre a limitação das horas de trabalho. As primeiras leis deste gênero votadas na Inglaterra, não foram extorquidas senão pondo barris de pólvora sob os maquinismos das fábricas.

Além disso, nos países em que a aristocracia não foi ainda derrubada por uma revolução, os senhores e os burgueses entendem-se maravihosamente. – “Tu me reconhecerás, senhor, o direito de legislar, e eu estarei de guarda ao teu castelo”, diz o burguês e assim o faz enquanto se não sente ameaçado.

Foram precisos quarenta anos duma agitação que, por momentos, penetrou até nos campos, para decidir o Parlamento inglês a garantir ao arrendatário o beneficio dos melhoramentos, feitos por ele na terra arrendada. Quanto à famosa “lei agrária” votada para a Irlanda. foi preciso – o próprio Gladstone o confessava – que o país se pusesse cm insurreição geral, que se recusasse terminantemente a pagar as rendas e se defendesse das cobranças pelo boicote, aos incêndios, as execuções dos lords, para que a burguesia se visse forcada a votar essa medíocre lei que finge proteger o país esfaimado contra os lords que são a causa disso.

Mas se se trata de proteger os interesses do capitalista, ameaçado pela insurreição ou só pela agitação – então o governo representativo, órgão da dominação do capital, torna-se feroz. Fere, e com mais segurança e covardia do que qualquer déspota. A lei contra os socialistas na Alemanha vale o édito de Nantes; e nunca Catarina II depois da Jacquerie de Pongatchoff, nem Luís XVI depois da guerra das farinhas, deram tantas provas de ferocidade como essas duas “Assembléias Nacionais” de 1848, e de 1871, cujos membros gritavam: “Matai os lobos, as lobas e os lobinhos!” e unanimamente, à exceção de um voto, felicitavam pelos massacres os soldados ébrios de sangue!

A fera anônima de seiscentas cabeças ultrapassou os Luís XI e os João IV.

Assim será sempre enquanto houver um governo representativo, seja ele regularmente eleito, ou imposto por meio de insurreição.

Ou a igualdade econômica se estabelece na nação, na cidade, e então os cidadãos livres e iguais não abdicarão dos seus direitos nas mãos de alguns, procurarão um novo modo de organização que lhes permita gerir eles mesmos as suas coisas. Ou haverá ainda uma minoria que dominará as massas no terreno econômico – um quarto Estado composto de burgueses privilegiados, e então não terão as massas apoio nenhum. – O governo representativo, eleito por essa minoria, procederá coerentemente. Legislará para manter os seus privilégios e procederá contra os insubmissos pela força e o massacre.

Ser-nos-ia impossível analisar neste livro todos os defeitos do governo representativo. Seria preciso para isso escrever muitos volumes. Limitando-nos apenas aos mais essenciais, ainda assim teríamos de sair dos limites marcados para estes capítulos. Há porém um que merece ser mencionado.

Coisa singular! O governo representativo tinha por fim impedir o governo pessoal; devia dar o poder a uma classe e não a uma pessoa. E contudo houve sempre a tendência para voltar ao poder pessoal, à submissão a um só homem.

A causa desta anomalia é muito simples. Depois de se terem dado ao governo as milhares de atribuições que se lhe reconhecem hoje; depois de se lhe ter confiado a gestão de todas as coisas que interessam o país, e dado um orçamento de muitos milhões, era possível confiar à multidão parlamentar a gerência dessas inúmeras coisas? Foi pois necessário nomear um poder executivo – o ministério – investido com todas essas atribuições, quase reais. Que ínfima autoridade não é a de um Luís XIV que se vangloria de ser o Estado, comparada com a dum ministério constitucional de hoje!

É verdade que a Câmara pode derrubar esse ministério, mas para fazer o quê? – Para nomear outro que seria obrigado a derrubar dentro de oito dias se ela fosse conseqüente? Assim prefere conserva-lo até que o país grite demasiadamente, e então despede-o para chamar o que derrubara dois anos antes. Forma assim esta espécie de gangorra. Gladstone-Beaconsfield, Beaconsfield-Gladstone, o que fundamentalmente é a mesma coisa; o país é desta forma governado sempre por um homem, o chefe do gabinete.

E se se trata de um homem hábil, que lhe garante “a ordem”, isto é, exploração dentro e a exploração para os outros países – então submete-se a todos os seus caprichos, atribui-lhes todos os dias novos poderes. Seja qual for o seu desprezo pela constituição, sejam quais forem os escândalos do seu governo, suporta tudo; se o contraria nas coisas insignificantes, não deixa de lhe dar carta branca em tudo o que tem importância. Bismarck é um exemplo disso; foram-no para as gerações precedentes Guizot, Pitt e Palmerston.

Isto compreende-se perfeitamente: todo governo tem uma tendência para se tornar pessoal; é a sua origem; é a sua essência. Seja o parlamento censitário ou saia do sufrágio universal, seja nomeado exclusivamente por trabalhadores, e composto por trabalhadores, procurará sempre o homem em que possa aliviar-se do trabalho de governar, e ao qual se submeta. Enquanto confiarmos a um pequeno número todas as atribuições econômicas, políticas, militares, financeiras, industriais, etc., etc., que lhe damos hoje, esse pequeno grupo tenderá necessariamente, como um destacamento de soldados em campanha, a submeter-se a um chefe único.

Isto em tempo de paz. Se a guerra estoura nas fronteiras, ou se uma luta civil se desencadeia no interior, – então o primeiro ambicioso que aparecer, o primeiro aventureiro hábil, apoderando-se da máquina de mil ramificações que se chama administração, impor-se-á ao país. A assembléia não será capaz de lho impedir como não o seria qualquer de quinhentos homens tomados ao acaso na rua: pelo contrário paralizará a resistência. Os dois aventureiros que usam o nome de Bonaparte são meros acasos. Foram a conseqüência inevitável da concentração dos poderes.

Quanto à eficácia que têm os discursos para resistirem aos golpes de estado, a França sabe-o bem. Mesmo nos nossos dias, foi por ventura a Câmara, que salvou a França do golpe de Estado de Mac-Mahon? Foram – sabe-se hoje – os grupos extra-parlamentares. Citam-nos a Inglaterra? Mas ela não se vangloria de ter mantido as suas instituições parlamentares durante o século XIX! Ela soube evitar, é verdade, durante este século, a guerra de classes; mas tudo nos leva a crer que o teria feito igualmente, e não é preciso ser profeta para prever que o Parlamento não sairá desta luta e cairá duma maneira ou de outra conforme a marcha da Revolução.

E se quiséssemos, na próxima revolução, deixar as portas abertas à reação, à própria monarquia talvez, bastava-nos para isso confiar os nosso interesses a um governo representativo, a um ministério com todos os poderes que possui hoje. A ditadura reacionária, a princípio com um certo tom avermelhado, depois azulando-se à medida que se fosse sentindo mais firme na sela, não se faria esperar. Teria à sua disposição todos os instrumentos de dominação: e deles facilmente se poderia servir.

Fontes de tantos males, não presta o sistema representativo alguns serviços pelo menos para o desenvolvimento progressivo e pacífico das sociedades?

– Não teria ele contribuído para a descentralização do poder que se impunha no nosso século? – Não soube ele mesmo impedir as guerras? – Não teria ele sabido adaptar-se às exigências de ocasião e sacrificar a tempo uma ou outra instituição já velha, para evitar a guerra civil? Não oferece ele, pelo menos, algumas garantias de progresso e melhoramento no interior?
Quanta ironia amarga não há em cada uma destas perguntas e em tantas outras que surgem quando se julga a instituição! Toda a história do nosso século prova o contrário.

Os parlamentos, fiéis à tradição real e à sua transfiguração moderna, o jacobinismo, não fizeram senão concentrar os poderes nas mãos do governo. Funcionarismo para tudo – tal é a característica do governo representativo. Desde o princípio deste século se fala em descentralização, autonomia, e não se faz senão centralizar, matar os últimos vestígios de autonomia. A própria Suíça sofreu essa influência, e na Inglaterra deu-se o mesmo. Sem a resistência dos industriais e dos comerciantes, estaríamos ainda hoje a pedir a Paris licença para matar um boi em Brives-Guillarde. Tudo cai pouco a pouco sob a alçada do governo. Só lhe falta já a gestão da indústria e do comércio, da produção e do consumo, e os democratas socialistas cegos pelos preconceitos autoritários sonham já com o dia em que poderão regular no parlamento de Berlim o trabalho das fábricas e o consumo em toda a Alemanha.

O regime representativo, que dizem ser tão pacífico, preservou-nos das guerras? Nunca se exterminou tanto como sob o regime representativo. A burguesia precisa dominar nos mercados e essa dominação não se obtém senão à custa das outras burguesias, pelos obuzes e pelas metralhadoras. É preciso dar a glória militar aos advogados e aos jornalistas e não há maiores partidários da guerra do que os guerreiros de gabinete.

Não se adaptam então os parlamentos às exigências de ocasião? À modificação das instituições em decadência?

Como no tempo da Convenção era preciso espetar os sabres quase no pescoço dos convencionais para lhes arrancar apenas a sanção dos fatos consumados, assim hoje é preciso a insurreição para arrancar aos “representantes do povo” a mais insignificante das reformas.

Quanto ao melhoramento do corpo eletivo, nunca se viu uma degradação dos parlamentos como nos nossos dias. Como todas as instituições em decadência, esta vai cada vez mais tornando-se pior. Falava-se da podridão parlamentar do tempo de Luís Filipe. Falai hoje às poucas pessoas honestas perdidas nessas paragens e elas vos dirão: “É de doer o coração”! O parlamentarismo só inspira tristeza a quem o observar de perto.

Mas, não poderia ele melhorar? Um elemento novo, o elemento operário, não lhe insuflaria um sangue novo? – Analisemos então a própria constituição das Assembléias representativas, estudemos o seu funcionamento, e veremos que alimentar esses sonhos, é tão ingênuo como casar um rei com uma camponesa na esperança de uma geração de bons reis!

Parte III

Os defeitos das Assembléias representativas não nos causarão estranheza, se refletirmos um momento apenas sobre a maneira como elas se recrutam e como funcionam.

Será preciso que eu descreva aqui o quadro, tão pungente, tão profundamente repugnante, e que nós todos conhecemos, – o quadro das eleições? Na burguesa Inglaterra e na democrática Suíça, na França como nos Estados Unidos, na Alemanha como na República Argentina, não é essa triste comédia em toda parte a mesma?

É preciso contar como os agentes e as comissões eleitorais “forjam, arrumam” uma eleição (verdadeira gíria de larápios), espalhando para um lado e para o outro, promessas políticas nos comícios; como eles penetram nas famílias, adulando a mãe, o filho, acariciando se for preciso o cão asmático ou o gato do “eleitor”? como eles se espalham pelos bares, convertem os eleitores e atraem os mais calados abrindo com eles discussões, como esses burlões que vos arrastam ao “jogo da vermelhinha”? como o candidato, depois de se ter feito desejar, aparece enfim no meio dos seus “queridos eleitores”, com um sorriso benevolente, o olhar modesto, a voz melíflua, – tal qual como velha megera que aluga quartos em Londres, ao procurar enredar um locatário com o seu doce sorriso e os seus olhares angélicos? É preciso enumerar os programas mentirosos – todos mentiosos – sejam eles oportunistas ou socialistas-revolucionários, nos quais o próprio candidato, por pouco inteligente que seja e por pouco que conheça a Câmara, acredita tanto como acredita nas predicações do “Mensageiro Coxo” e que ele defende com entusiasmo uma verbosidade, uma entoação de voz, um sentimento dignos de um doido ou de um ator de feira? Não é debalde que a comédia popular se não limita a fazer Bertrand e de Robert Macaire simples burlões e lhes acrescenta a essas excelentes qualidades a de “representantes do povo” à busca de votos e de lenços para roubarem.

É preciso dar aqui a nota das despesas das eleições? Mas todos os jornais nos informam suficientemente a esse respeito. Ou reproduzir a nota das despesas dum agente eleitoral, na qual figuram grandes quantidades de carneiros, fardos de flanela e até água enviado tudo pelo candidato compadecido dos “seus queridos filhos”, dos seus eleitores? Será preciso reproduzir aqui as despesas com pêras cozidas e ovos, “para confundir o partido contrário”, que sobrecarregam os orçamentos eleitorais nos Estados Unidos, e as despesas de cartazes caluniosos e “manobras da última hora” que desempenham já um horrível papel nas eleições européias?

E quando o governo intervém, com os seus “lugares”, os seus cem mil “lugares” oferecidos ao que mais der, as suas condecorações, os seus depósitos de tabaco, a sua alta proteção prometida às casas de jogo e de vício, a sua imprensa desavergonhada, os seus policiais, os seus burlões, os seus juízes e os seus agentes…

Não, seria demais! Deixemos essa lama, não a remexamos! Limitemo-nos apenas a perguntar: Haverá uma única paixão humana, a mais vil, a mais abjecta de todas, eu não seja aproveitada num dia de eleições? Fraude, calúnia, baixeza, hipocrisia, mentira, toda a lama que existe no fundo da besta humana – eis o belo espetáculo que nos oferece um país quando se lança no período eleitoral.

É assim e assim será sempre enquanto houver quem faça eleições para servir de escada aos outros, que se tornarão chefes e senhores dos que os elegeram. Sejam até operários todos, todos iguais, e meta-se-lhes na cabeça eleger governantes – que se dará a mesma coisa. Já não se distribuirão pernas de carneiro, mas distribuir-se-á a adulação, a mentira, – o que equivalerá ao mesmo. Como se há de conseguir outra coisa quando se põem em leilão os direitos mais sagrados?

Que se pede, afinal, aos eleitores? Que encontrem um homem a que se possa confiar o direito de legislar sobre tudo o que eles têm de mais caro: os seus direitos, os seus filhos, o seu trabalho. E é para admirar que dois ou três mil Robert Macaire se disputem entre si os direitos reais? Procura-se um homem ao qual se possa confiar, juntamente com alguns outros, saídos da mesma loteria, o direito de perder os nossos filhos aos vinte e um anos ou aos dezenove, se assim lhe parecer acertado; de os conservar encerrados num quartel durante três anos, ou mesmo dez se se julga isso melhor, absorvendo uma atmosfera putrefata; de os fazer massacrar quando e onde quiser ao começar uma guerra que o país será forçado a fazer, uma vez a isso arrastado. Poderá fechar as Universidades ou abri-las conforme lhe apetecer; obrigar os pais a mandar para lá os filhos ou proibir-lhes a entrada. Novo Luís XIV poderá favorecer uma indústria ou mata-la se assim o preferir; sacrificar o Norte pelo Sul, ou o Sul pelo Norte; anexar uma província ou cede-la. Disporá duma insignificância como três bilhões de francos por ano, que ele tirará do estômago do trabalhador. Terá ainda a prerrogativa real de nomear o poder executivo, isto é, um poder que, desde que esteja de acordo com a câmara, poderá ser despótico e tirânico de uma maneira diferente da extinta realeza. Porque, se Luís XVI não mandava senão em algumas dezenas de milhares de funcionários, ele manda em cem vezes maior número deles e se o rei podia roubar ao tesouro público alguns sacos de escudos, o ministro constitucional de hoje, num só lance de Bolsa, recebe “honestamente” milhões.

Não é para admirar ver o embate de tantas paixões, quando se procura um chefe para ser investido dum tal poder! Quando a Espanha pôs o seu trono vago em leilão, alguém se admirou de ver flibusteiros surgirem de toda a parte? Enquanto permanecer a venda dos poderes reais, nada se poderá reformar: a eleição será a feia das vaidades e das consciências.

Ainda mesmo que fosse cerceada o mais possível o poder dos deputados, ainda que o fracionassem constituindo em cada Estado pequenos Estados correspondendo à atual divisão dos distritos ou mesmo em conselhos, tudo ficaria na mesma.

Compreende-se ainda a delegação quando cem, duzentos homens que se encontram todos os dias no seu trabalho, nos seus serviços comuns, que se conhecem muito bem uns aos outros, que discutiram sob todos os aspectos uma questão qualquer e que chegaram a uma decisão, escolhem um deles e o enviam para se entender com os outros delegados do mesmo gênero sobre este assunto especial. Então a escolha faz-se com pleno conhecimento de causa, sabendo cada um o que pode confiar ao seu representante. Esse representante não fará mais do que expor perante outros representantes as considerações que levaram os seus constituintes a tal ou tal conclusão. Não podendo impor nada, tentará a conciliação e voltará com uma simples proposta que os mandatários poderão aceitar ou recusar. Foi mesmo assim que nasceu a representação: quando as comunas enviaram os seus delegados às outras comunas não tinham outro mandato. É ainda assim que procedem os meteorologistas, os estatísticos nos seus congressos internacionais, os delegados das companhias de estrada de ferro e das administrações postais de diversos países.

Mas, o que se exige aos eleitores? – A dez, vinte, cem mil, que não se conhecem absolutamente, que não se vêem nunca, que se não encontram nunca tratando duma questão comum, pede-se-lhes que se entendam sobre a escolha de um homem. E assim é esse homem enviado para expor um assunto determinado, ou defender uma resolução relativa a uma questão especial? Não, ele deve servir para tudo, para legislar não importa sobre quê, e a sua decisão será lei. O caráter primitivo da delegação transformou-se inteiramente e tornou-se um verdadeiro absurdo.

Esse ser onisciente que hoje se procura não existe. Mas pode encontrar-se um cidadão honesto que reúna certas condições de probidade e de bom senso com alguma instrução. É esse que será eleito? Evidentemente que não. Há apenas vinte pessoas no seu círculo eleitoral que conhecem as suas excelentes qualidades. Nunca procurou a popularidade, despreza os meios usuais de fazer barulho em volta do seu nome, não alcançará mais do que 200 votos. Não chegará mesmo a ser candidato, nomeando-se para isso um advogado ou um jornalista, bom falador ou bom escrevinhador que irá para o parlamento com os seus hábitos do tribunal ou da redação e irá reforçar a carneirada do ministério ou da oposição.

Poderá ser ainda algum comerciante, envaidecido com a honra de ser deputado, e que não trepidará perante uma despesa de 10 000 francos para conquistar a notoriedade. E nos países onde os costumes são eminentemente democráticos como nos Estados Unidos, onde as comissões se constituem com extrema facilidade e contrabalançam a influência da fortuna, nomear-se-á o pior de todos, o político de profissão, o ser abjeto que é hoje a chaga da grande república, o homem que faz da política uma indústria e que a explora segundo os processos da grande indústria – publicidade e corrupção.

Transformai o sistema eleitoral como quiserdes: substitui o escrutínio por pequenos círculos, pelo escrutínio de lista, fazei as eleições em dois graus como na Suíça (eu falo das reuniões preparatórias) modificai-o quando puderdes, aplicai o sistema nas melhores condições de igualdade, – talhai e retalhai os colégios eleitorais – o vício intrínseco da instituição não terá com isso desaparecido. Aquele que souber conseguir a metade dos sufrágios (salvo muito raras exceções, nos partidos perseguidos), será sempre nulo, sem convicções – o homem que sabe contentar toda a gente.

É por isso que – Spencer o notou já – os parlamentos são geralmente tão mal compostos. A Câmara, diz ele, na sua Introdução, é sempre inferior à média do país, não só em consciência como em inteligência. Um país inteligente figura na sua representação como se não o fosse. Se se propusesse ser representado por idiotas não teria escolhido melhor. Quanto à probidade dos deputados, nós sabemos bem o que ela vale. Basta ler o que deles dizem os ex-ministros que o conheceram e apreciaram.

Que pena que não haja caravanas especiais, para que os eleitores pudessem ir ver a sua Câmara funcionar. Como eles ficariam enojados. Os antigos embebedavam os seus escravos para ensinarem aos filhos a aversão pela embriaguês. Parisienses, ide à Câmara ver os vossos representantes para aborrecerdes o governo representativo.

A esse montão de nulidades o povo confia todos os seus direitos, salvo o de os destituir de tempos a tempos e de nomear outros. Mas como a nova assembléia, nomeada segundo o mesmo sistema e encarregada da mesma missão, será tão má como a precedente, a grande massa acaba por se desinteressar da comédia e limita-se a algumas substituições de vez em quando, aceitando alguns candidatos novos que conseguem por qualquer motivo impor-se.

Mas se a eleição está já corroída de um vício de constituição, irreformável, que dizer da maneira como a assembléia cumpre o seu mandato? Refleti apenas um minuto e vereis bem depressa a inanidade da missão que lhe impusestes.

O vosso representante deverá emitir uma opinião, um voto, sobre toda a série variável até ao infinito, de questões que poderão surgir nessa formidável máquina, – o Estado centralizado.

Deverá votar o imposto sobre os cães e a reforma do ensino universitário, sem nunca ter posto os pés na Universidade e sabido o que é um cão de guarda. Deverá pronunciar-se sobre as vantagens da espingarda Grass e sobre o local a escolher para as cudelarias do Estado. Votará sobre a filoxera, o guano, o tabaco, o ensino primário e o saneamento das cidades; sobre a Cochinchina e a Guiana, sobre as chaminés e o observatório de Paris. Ele que não viu os soldados senão na parada, dividirá os corpos do exército, e sem nunca ter visto um árabe, vai fazer e desfazer o código muçulmano da Argélia. Votará a barretina ou quepi, segundo as predileções da esposa. Protegerá o açúcar e sacrificará o pão. Matará a vinha julgado protegê-la; votará a arborização contra a pastagem e protegerá a pastagem contra a floresta. Tratará a peito a questão dos bancos. Inutilizará um canal por causa de uma estrada de ferro, sem saber muito bem em que parte da França se encontra um e outro. Acrescentará novos artigos ao Código Penal, sem o ter nunca folheado. Proteu onisciente e onipotente, hoje militar, amanhã tratador de porcos, e sucessivamente banqueiro, acadêmico, limpador de canos, médico, astrônomo, fabricante de drogas, curtidos de peles ou negociante, segundo a ordem do dia da Câmara, não hesitará nunca. Habituado na função de advogado, de jornalista, ou de orador de reuniões públicas, a falar do que não conhece, votará sobre todas as questões, com a única diferença de que no seu jornal divertia o porteiro, no tribunal despertava os juízes e os jurados sonolentos e na Câmara a sua opinião será lei para trinta, quarenta milhões de habitantes.

E como lhe é materialmente impossível ter uma opinião sobre os mil assuntos em que o seu voto fará lei, passará o tempo a conversar com o vizinho do lado, ou a escrever cartas para aquecer o entusiasmo dos seus “queridos eleitores”, enquanto o ministro estiver lendo um relatório cheio de algarismos dispostos para o caso pelo seu chefe de gabinete; e no momento do voto se pronunciará pró ou contra o relatório segundo o sinal do chefe do partido.

Assim uma questão de gorduras para porcos ou de equipamento para o soldado não será nos dois partidos de oposição senão uma questão de escaramuça parlamentar. Não quererão saber se os porcos terão necessidade das gorduras e se os soldados não estarão já sobrecarregados como camelos do deserto – a única questão que os interessa será saber se um voto afirmativo beneficia aos seu partido. A batalha parlamentar faz-se sobre as costas do soldado, do agricultor, do trabalhador industrial, no interesse do ministro ou da oposição.

Pobre Proudhon, eu calculo os seus dissabores quando teve a ingenuidade infantil, de entrar na Assembléia, de estudar a fundo cada uma das questões como ordem do dia. Levava ã tribuna algarismos, idéias – nem sequer o escutavam. As questões resolveram-se todas antes da sessão, por esta simples consideração: é útil, é prejudicial ao nosso partido? A contagem de votos está feita: os submissos são registrados, contados cuidadosamente. Os discursos não se pronunciam senão para efeito teatral; não se escutam senão quando têm valor artístico ou se prestam ao escândalo. Os ingênuos imaginam que Roumenstan, arrebatou a Câmara com a sua eloqüência, e Roumenstan no fim da sessão, estuda com os seus amigos a maneira como poderá realizar as promessas feitas para caçar os votos. A sua eloqüência não era mais do que uma cantata de ocasião, composta e pronunciada para divertir a galeria, para manter a sua popularidade com algumas frases empoladas.

“Caçar votos!” – Mas quem são esses que caçam votos, esses votos que fazem inclinar para um e para outro lado a balança parlamentar? Quem são esses que derrubam e erguem ministérios e que dotam o país com uma política de reação ou de aventuras exteriores? Quem decide entre o ministério e a oposição? – São os chamados “camaleões da política”. Os que não têm opinião, os que se sentam sempre entre duas cadeiras, que vogam entre os dois partidos principais da Câmara.
É precisamente esse grupo – uns cinqüenta indiferentes, de gente sem convicção nenhuma, que se fazem de cataventos entre os liberais e os conservadores, que se deixam influenciar pelas promessas, os lugares, a lisonja ou o pânico, – esse pequeno grupo de nulidades, que dando ou recusando os seus votos, decide todas as questões do país. São eles que fazem as leis ou que as revogam. São eles que apóiam ou derrubam os ministérios e que mudam a direção da política. – Uns cinqüenta indiferentes ditando a lei do país, – eis a que se reduz o sistema parlamentar.

Isto é inevitável, seja qual for a composição do parlamento, embora ele esteja repleto de estrelas de primeira grandeza e de homens íntegros, – a deliberação pertencerá… aos camaleões! E assim será sempre enquanto for a maioria a fazer a lei.

Depois de termos indicado ligeiramente os vícios fundamentais das assembléias representativas, deveríamos agora mostrar essas assembléias funcionando. Deveríamos mostrar como todas, desde a Convenção até ao conselho da Comuna de 1871, desde o Parlamento inglês até ã Skoupchtchina sérvia, estão eivadas de nulidade; como as suas melhores leis têm sido apenas – segundo a expressão de Buckle – a abolição das leis anteriores, como essas leis têm sido arrancadas à força pelo povo, por meio insurrecionais. Seria uma grande história que ultrapassaria os limites deste capítulo.

Mas mesmo quem souber raciocinar sem se deixar sugestionar pelos preconceitos da nossa viciosa educação encontrará por si próprio muitos exemplos na história do governo representativo dos nossos dias. E compreenderá que, qualquer que seja o corpo representativo, seja ele composto por operários ou por burgueses, ou mesmo amplamente aberto aos socialistas-revolucionários – conservará todos os vícios das assembléias representativas.

Esses defeitos não dependem dos indivíduos, são inerentes à própria instituição.
Sonhar um Estado operário, governado por uma assembléia eleita é o pior dos sonhos que nos inspira a nossa educação autoritária.

Como se não pode ter um bom rei, nem em Rieuzi, nem em Alexandre III, assim se não pode ter um bom parlamento. O futuro socialista tem outra direção: ele abrirá à humanidade caminhos novos na ordem política, como na ordem econômica.

Parte IV

É principalmente observando a história do regime representativo, a sua origem e a maneira como a instituição se adulterou à medida que se desenvolveu o Estado, que nós compreendemos que ela deu já tudo o que tinha a dar, e que deve ceder o lugar a um novo molde de organização política.

Não precisamos ir muito longe; vejamos o século XII e a libertação das Comunas.

No meio da sociedade feudal produz-se um grande movimento libertário. As cidades libertam-se dos senhores. Os seus habitantes “juram” a defesa mútua; declaram-se independentes dentro das suas muralhas; organizam-se para a produção e a troca, para a indústria e o comércio; criam as suas cidades que durante três ou quatro séculos servem de refúgio ao trabalho livre, às artes, às idéias – que lançam os fundamentos dessa civilização que hoje nós glorificamos.

Longe de serem de origem puramente romana, como pretenderam Raynouard e Lebas em França (seguido por Guizot e, em parte, por Augusto Thierry), Eichhorn, Gaupp e Savigny na Alemanha; longe de serem de origem puramente germânica, como o afirma a escola brilhante dos “germanistas”, as Comunas foram um produto natural da idade média e da importância sempre crescente dos burgos como centros de comércio e de indústria. É por isso que simultaneamente, na Itália, em Flandres, na Gália, na Germânia, no mundo Escandinavo e no mundo Eslavo, onde a influência romana é nula e a influência germânica insignificante, nós vemos afirmar-se pela mesma época, isto é, nos séculos XI e XII, essas cidades independentes que enchem três séculos com a sua vida movimentada e mais tarde se tornam os elementos constituídos dos Estados modernos.

Conjurações de burgueses que se armam para a defesa e criam no interior uma organização independente dos seus senhores temporais ou eclesiásticos, tanto como do rei, – as cidades livres florescem logo dentro dos seus muros; e embora procurem substituir-se ao senhor no domínio das aldeias, respiram o mesmo sopro de liberdade. Nus sumes homes cum il sunto, – “Nós somos homens como eles”, cantam os aldeões caminhando para a libertação dos servos.

“Asilos abertos à vida de trabalho”, as cidades libertadas constituem-se no interior como ligas de corporações independentes. Cada corporação tem a sua jurisdição, a sua administração, a sua milícia. Cada qual é livre, não só no que diz respeito ao seu trabalho ou a seu comércio, mas em tudo o que o Estado lhe atribui mais tarde: instrução, medidas sanitárias, infrações aos costumes, questões penais e civis, defesa militar. Corpos políticos, ao mesmo tempo industriais e comerciais, as corporações unem-se pelo fórum o povo reunido ao som dos sinos nas grandes ocasiões, ou para julgar os casos entre as corporações, ou para decidir questões relativas a toda a cidade, ou para se entenderem sobre os grandes empreendimentos comunais que exigiam o concurso de todos os habitantes.

Na Comuna, sobretudo no princípio – ponto de ligação com o governo representativo – a rua, a seção, toda a cidade, toma as deliberações, – não por maioria mas por discussão até que os partidários das duas opiniões opostas ou diferentes acabem por aceitar voluntariamente mesmo para experiência, a opinião do maior número.

Existia acordo? – A resposta está nas suas obras que nós não cessamos de admirar sem as podermos ultrapassar. Tudo o que ficou de belo do fim da idade média é obra dessas cidades. As catedrais, esses monumentos gigantescos que contam em pedra, a história, as aspirações das comunas, são a obra dessas corporações, trabalhando por piedade, por amor da arte e da cidade (não era como os fundos municipais que as catedrais de Reims, de Rouem, poderiam pagar-se) e rivalizando entre si na edificação das suas muralhas.

É às Comunas libertadas que nós devemos o renascimento da arte, é às corporações de mercadores, por vezes a todos os habitantes da cidade que contribuíam cada um com a sua parte para a organização, preparação e provisões de uma caravana ou de uma flotilha, que nós devemos esse desenvolvimento do comércio que deu depois as ligas hansiáticas e as descobertas marítimas. É às corporações industriais, estupidamente difamadas depois pela ignorância e egoísmo dos exploradores da indústria, que nós devemos a criação de quase todas as artes industriais cujos benefícios gozamos hoje.

Mas a Comuna da idade média tinha que perecer. Dois inimigos a atacavam ao mesmo tempo: o de dentro e o de fora.

O comércio, as guerras, a dominação egoísta sobre o campo contribuíram poderosamente para aumentar a desigualdade no seio da Comuna, para empobrecer uns e enriquecer outros. Durante algum tempo a corporação impediu o desenvolvimento do proletariado no seio da cidade, mas bem depressa ela sucumbiu na luta desigual. O comércio sustentado pela pilhagem, as guerras contínuas de que a história da época cheia, empobreciam as outras; a burguesia nascente trabalhava para fomentar a discórdia, para exagerar as desigualdades de fortuna. A cidade dividiu-se em ricos e pobres, em “brancos” e “negros”; começou a luta das classes e com ela o Estado no seio da Comuna. À medida que os pobres iam se tornando cada vez mais pobres, sujeitos cada vez mais aos ricos pela usura, ia-se estabelecendo na Comuna a representação municipal, o governo por procuração, isto é, o governo dos ricos. A Comuna constituía-se em Estado representativo, com cofre municipal, milícia mercenária, condottieri armados, serviços públicos, funcionários. Ela própria um Estado em ponto pequeno, não era natural que fosse absorvida pelo estado em ponto grande que se constituía sob os auspícios da realeza? Minada já no interior, foi na verdade absorvida pelo inimigo exterior – o rei.

Enquanto as cidades livres floresciam, constituía-se às suas portas o Estado centralizado.

Nasceu longe do ruído do fórum, longe do espírito municipal que inspirava as cidades independentes. É numa cidade nova, Paris, Moscou, – amontoado de aldeias, – que o poder nascente da realeza se consolidou. Que era então o rei? Um chefe de bando como os outros. Um chefe cujo poder se estendia apenas sobre o bando e que recebia o tributo dos que lhe queriam comprar a paz. Desde que, de simples defensor das muralhas tentava tornar-se senhor da cidade, o fórum o expulsava. Refugiou-se pois numa aglomeração, numa cidade nova. Aí, tirando a sua riqueza da exploração do trabalho dos servos, não encontrando obstáculos na plebe turbulenta, começou pelo dinheiro, pela fraude, pela intriga e pelas armas, o lento trabalho de aglomeração, de centralização, que as guerras da época, as invasões contínuas favoreciam, – direi mesmo que impunham, – simultaneamente a todas as nações européias, às Comunas já em decadência, Estados dentro dos seus muros, serviram-lhe de mira e de modelo. Tratava-se apenas de as englobar pouco a pouco, de lhe apropriar uns órgãos, de as fazer servir o desenvolvimento do poder real. Foi o que a realeza fez, primeiro com muitas precauções e astúcia e depois cada vez mais brutalmente à medida que sentia aumentarem as suas forças.

O direito escrito nascera já, ou melhor cultivava-se, nas cartas das Comunas. Serviu de base ao Estado. Mais tarde o direito romano dá-lhe a sua sanção, ao mesmo tempo que lhe dá a autoridade real. A teoria do poder imperial, desenterrada dos glossários romanos, propaga-se em benefício do rei. A Igreja, por seu lado, apressa-se a dar-lhe a sua benção, e depois de ter falhado na sua tentativa de construir um Império universal, concentra-se em volta daquele por intermédio do qual esperava reinar um dia sobre a terra.

Durante cinco séculos de realeza prosseguem esse lento trabalho de aglomeração, amotinando os servos e as Comunas contra o senhor, e mais tarde esmagando os servos e as Comunas com o auxílio do senhor, tornando-se seu fiel servidor. Começa lisongeando as Comunas mas espera que as lutas intestinas lhe abram as portas, lhe ponham à disposição os seus cofres de que ela se apodera e enche os mercenários. Procede contudo para com as Comunas com precaução: reconhece-lhes vários privilégios, quando as submete ao seu domínio.

Chefe dos soldados que não lhe obedecem se não quando ele lhes procura presa para saquearem, o rei esteve sempre rodeado de um conselho dos seus sub-chefes, que no século XIV e XV formam o seu conselho de Nobreza. Mais tarde, vem juntar-se a este conselho um conselho do clero. E à medida que o rei se vai apoderando das Comunas, convida a irem à sua corte, – sobretudo nas épocas críticas, – os representantes das suas “boas cidades”, para lhes pedir subsídios.

Foi assim que nasceram os parlamentos. Mas, – notemos bem isso – esses corpos representativos, como a própria realeza, tinham um poder muito limitado. O que se lhes pedia era apenas um auxílio pelos delegados das cidades, ainda era preciso que elas o retificasse. Quanto à administração interior das Comunas, a realeza não tinha nada com isso. – “Tal cidade está pronta a dar-vos tal subsídio para repelir tal invasão. Consente em aceitar uma guarnição para servir de praça forte contra o inimigo”, – tal era o mandato do representante da época. Que diferença do mandato ilimitado, compreendendo tudo o que há, que nós damos hoje aos nossos deputados.

O mal estava feito. Alimentada pelas lutas dos ricos com os pobres, a realeza constituira-se sob o pretexto da defesa nacional.

Mas bem depressa, vendo o desperdício dos seus subsídios à corte real, os representantes das Comunas procuram pôr-lhe termo. Impõem-se à realeza como administradores do tesouro nacional; e na Inglaterra, apoiados pela aristocracia, conseguem ser aceitos como tal. Na França, depois do desastre de Poitiers, estavam quase a arrogar-se esses direitos; mas Paris insurrecionada por Étienne Marcel é reduzida ao silêncio, ao mesmo tempo que a Jacquerie, e a realeza sai da luta com uma força nova.

Desde então tudo contribui para a concentração da realeza, para a centralização dos poderes na mão do rei. Os subsídios transformam-se em impostos e a burguesia apressa-se a pôr ao serviço do rei o seu espírito de ordem e administração. A decadência das Comunas, que sucumbem uma após outra perante o rei; a fraqueza dos camponeses reduzidos cada vez mais à servidão, econômica ou mesmo pessoal; as teorias do direito romano desenterrada pelos juristas; as guerras contínuas – fonte permanente de autoridade; – tudo favorece a consolidação do poder real. Herdeiro da organização comunal, apodera-se dela para se intrometer cada vez mais na vida dos seus súditos – de tal forma que no tempo de Luís XIV ele pôde exclamar: “o Estado sou eu”!

Desde então é a decadência, o envilecimento da autoridade, caindo nas mãos das cortesãs, procurando erguer-se sobre Luís XVI pelas medidas liberais do princípio do reinado, mas sucumbindo logo o peso das suas culpas.

O que faz a grande Revolução quando ataca a autoridade do rei?

O que tornou possível essa Revolução foi a desorganização do poder central, reduzido durante quatro anos à impotência absoluta, ao papel de simples registrador dos fatos consumados; é a ação espontânea das cidades e dos campos arrancando ao poder todas as suas atribuições, recusando-lhe o imposto e a obediência.

Mas a burguesia que tinha uma importância maior podia acomodar-se com este estado de coisas? Ela via o povo, depois de ter abolido os privilégios dos senhores, ia combater os da burguesia urbana e rústica, e procurou domina-lo. Para isso fez-se defensora do governo representativo e trabalhou durante quatro anos com toda força de ação e de organização que se lhe conhece, para incutir na nação esta idéia. O seu ideal era o de Étienne Marcel: um rei que, em teoria, está investido dum poder absoluto, mas que na realidade se acha reduzido a zero por um parlamento, composto evidentemente pelos representantes da burguesia. A onipotência da burguesia pelo parlamento, encoberta pela realeza – eis o seu fim. Se o povo lhe impõe a República é contra a vontade que ela a aceita, e dela procura desembaraçar-se o mais depressa possível.

Atacar o poder central, despojá-lo das suas atribuições, descentralizar, pulverizar o poder seria confiar ao povo os seus negócios, seria correr o risco duma revolução verdadeiramente popular. É por isso que a burguesia procura reforçar cada vez mais o poder central, investi-lo de poderes em que o próprio rei não ousa pensar, a concentrar tudo nele, a submeter-lhe tudo duma ponta a outra da França – e depois apoderar-se de tudo pela Assembléia Nacional.

Este ideal do jacobino é ainda hoje o ideal da burguesia de todas as nações européias, e o governo representativo é a sua arma.

Pode ser este o nosso ideal? Os trabalhadores socialistas podem pensar em seguir, nos mesmos termos, a revolução burguesa? Podem pensar em reforçar por sua vez, o governo central entregando-lhe o domínio econômico, e confiar a direção de todas as questões políticas, econômicas, sociais, ao governo representativo? O que foi um compromisso entre a realeza e a burguesia deve ser o ideal do trabalhador socialista?

Evidentemente que não.

A uma nova fase econômica corresponde uma nova fase política. Uma revolução tão profunda como a que imaginam os socialistas não podia adaptar-se à vida política do passado. Uma sociedade nova, baseada na igualdade de condições, na posse coletiva dos instrumentos de trabalho, não poderia contentar-se, mesmo oito dias que fosse, com o regime representativo, nem com nenhuma das modificações com que procurassem galvanizar esse cadáver.

Esse regime já caducou. O seu desaparecimento é tão inevitável hoje como o foi outrora o seu aparecimento. Corresponde ao domínio da burguesia. É por esse regime que a burguesia impera há um século e terá de desaparecer com ele. Quanto a nós, se queremos a revolução social, devemos procurar o modo de organização política que corresponda ao novo modo de organização econômica.
Esse modo está já traçado. É a formação, do simples para o complexo, de grupos que se constituem livremente para a satisfação de todas as múltiplas necessidades dos indivíduos nas sociedades.

As sociedades modernas vão já nesse caminho. Em toda a parte o agrupamento livre, a livre federação procura substituir a obediência passiva; contam-se já em dezenas de milhões. Esses grupos livres e novos surgem todos os dias. Estendem-se e começam já a cobrir todos os ramos de atividade humana; ciências, artes, indústria, comércio, socorros, mesmo defesa do território e seguro contra o roubo e os tribunais – nada lhes escapa, vão-se estendendo cada vez mais e hão de acabar por abranger tudo o que o rei e o parlamento se arrogavam.

O futuro é do livre agrupamento dos interessados e não da centralização governamental – é da liberdade e não da autoridade.

Mas antes de esboçar o que surgiria do livre agrupamento, devemos ainda combater muitos preconceitos políticos de que todos estamos embuídos e é o que vamos fazer nos próximos estudos.

 

Porque todxs odeiam xs políticxs?

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Crimethinc

“Todo mundo odeia políticxs. Isso deveria ser surpreendente, considerando que as carreriras delxs dependem de ser apreciados, mas a razão é bem simples. Eles conseguem seus empregos por nos prometer o mundo, mas o seu trabalho é mantê-lo fora das nossas mãos – governá-lo.
Como qualquer outra forma de trabalho, essa governança impõe sua própria lógica. Pense no que acontece no Pentágono ou no Kremlin ou nos escritórios de toda prefeitura municipal. Essas atividades do dia-a-dia são as mesmas sob Democratas, assim como são sob os Republicanos; elas não são muito diferentes em Moscou hoje do que elas foram com os Bolcheviques ou mesmo o Czar. Políticos podem brandir poder dentro das estruturas do estado, mas essas estruturas ditam o que eles podem fazer com ele.
Para entender como isso funciona, nós temos que começar na Europa feudal, quando o capitalismo estava apenas começando e o tecido da sociedade era mais simples. Reis garantiam poder à nobres em troca de apoio militar, nobres davam terras à vassalos em troca de fidelidade; camponeses e servos davam aos seus lordes trabalho grátis e uma parte do que produziam em troca de não serem esterminados. O acesso aos recursos era determinado por um status herdado e um equilíbrio de alianças sempre mutável. Essas hierarquias eram explícitas mas extremamente instáveis: graças a existirem poucas outras maneiras de melhorar a divisão das coisas, as pessoas estavam constantemente se rebelando e derrubando-os.

Eventualmente, no entanto, os monarcas começaram a consolidar poder. Para alcançar isso, eles tiveram que construir o que nós hoje conhecemos como o aparato do estado: eles integraram seus capangas em uma única máquina monopolizando a força militar, legitimidade judicial e a regulação do comércio.
Ao contrário dos nobres dos tempos feudais, os funcionários nessa maquina tinham deveres especializados e autoridade limitada; eles respondiam diretamente aos monarcas que pagavam seus salários, frequentemente com dinheiro emprestado dos bancos que estavam florescendo por toda a Europa.

Os primeiros políticos eram ministros nomeados por reis para operar esse maquinário. De uma certa maneira, eles eram burocratas como aqueles abaixo deles; eles tinham que ser bastante competentes nos campos que supervisionavam, como um advogado da união ou um secretário de estado hoje. Mas competencia era muito menos importante do que a habilidade de arranjar favores com o rei via lisonja, subornos ou promessas remotas.

O capitalismo se desenvolveu em uma relação simbiótica com o aparato do estado. Em tempos feudais, a maioria das pessoas obtinha o que precisava fora da economia de trocas. Mas conforme o estado consolidou poder, os campos e pastos que eles tinham em comum foram privatizados, e as minorias locais e continentes além-mar foram implacavelmente pilhados. Como os recursos começaram a fluir mais dinamicamente, mercadores e banqueiros ganharam poder e influência crescentes.
As revoluções Norte Americanas e Européias dos séculos XVIII e XIX trouxeram a um fim o reinado dos reis. Vendo a mensagem escrita nas paredes, mercadores ficaram do lado dos explorados e dos excluídos. Mas o aparato do estado era essencial para proteger suas riquezas; então ao invés de abolir as estruturas pelas quais o rei os comandava, eles argumentaram que as pessoas deviam tomá-las pra si e administrá-las “democraticamente”. Consequentemente, “nós o povo” substitiu o rei como o poder soberano para os políticos cortejarem.
O aparato do estado veio consolidando poder independentemente dos indivíduos aos quais governava e à soberania à quem ele supostamente respondia. Polícia, educação, serviços sociais, miltares, instituições financeiras e jurisprudência se expandiram e se multiplicaram. Ao manter suas relações simbióticas com o capitalismo, todos esses tenderam à produzir forças de trabalho dóceis, mercados estáveis, e um fluxo estável de recursos. Como eles vieram a administrar mais e mais aspectos da sociedade de acordo com um corpo de conhecimento especializado, ficou ainda mais difícil imaginar a vida sem eles.
No século XX, uma nova onda de revoluções estabeleceu a dominação dessa classe burocrática atráves do ”mundo em desenvolvimento”. Dessa vez, mercadores eram destituídos junto com os reis; mas mais uma vez, o aparato estatal em si foi deixado intacto, operado por uma nova geração de políticos que alegavam servir a ‘classe trabalhadora’. Alguns chamaram à isso ”socialismo”, mas falando propriamente era simplesmente capitalismo estatal, aonde o capital é controlado pela burocracia governamental.

Hoje, o capital e o estado conseguiram substituir quase totalmente as hierarquias da era feudal. Riqueza e influência continuam hereditárias – daí a sucessão dos Roosevelts e dos Bushes na Casa Branca, ou dos ACMs na Bahia – mas são as estruturas que dominam nossas vidas ao invés dos indivíduos operando-as. E enquanto as hierarquias eram fixas porém fragéis, estas novas estruturas são extremamentes resilientes.
Algumas pessoas ainda tem esperanças de que a democracia vá contraatacar os efeitos do capitalismo. Mas não é coincidência que os dois se espalhem ao redor do mundo juntos: os dois preservam hierarquias enquanto permitem máxima mobilidade dentro delas. Isso transforma descontentamento em competição interna, permitindo àos indivíduos mudar suas posições sem contestar os inequilíbrios de poder construídos na sociedade. O livre mercado dá a qualquer trabalhadorx sensível um incentivo à se manter investindo em propriedade privada e competição; enquanto parecer mais verossímil melhorar a sua própria posição do que começar uma revolução, elx continuará competindo por uma promoção do que guerra de classes. Similarmente, democracia é a melhor maneira de maximizar investimento popular nas instituições coercitivas do estado porque dá ao maior número de pessoas possível o sentimento de que elas podem realmente ter alguma influências sobre elas.

Na democracia representativa, assim como na competição capitalista, todos supostamente tem uma chance mas apenas alguns chegam ao topo. Se você não venceu, você não deve ter tentado o suficiente! Essa é a mesma racionalização usada pra justificar injustiças como sexismo e racismo: escute, seus/suas vagabundxs preguiçosxs, vocês poderiam ter sido Pelé ou Dilma Rousseff se vocês tivessem trabalhado duro. Mas não há espaço no topo pra todos nós, não interessa o quanto nós trabalhemos.
Quando a realidade é gerada via mídia e o acesso à mídia é determinado pela riqueza, eleições são simplesmente campanhas publicitárias. A competição do mercado dita que lobistas ganham os recursos para determinar o campo onde os votantes tomam suas decisões. Sob essas circunstâncias, um partido político é essencialmente um negóico oferecendo oportunidades de investimento em legislação. É tolice esperar que representantes políticos se oponham aos interesses da sua clientela quando eles dependem diretamente deles por poder.
Mas mesmo que pudéssemos reformar o sistema eleitoral e votar em representantes com corações de ouro, o estado ainda seria um obstáculo para estruturas sociais consensuais e auto-determinação. Sua função social é impor controle: reforçar, punir, administrar. Na ausência de reis, a dominação continua – é tudo em que o sistema é bom.

Debates modernos entre a “esquerda” e a “direita” políticas geralmente se concentram em quando controle de capital deve ir para o estado do que para uma empresa privada. Ambos concordam que poder deve ser centralizados nas mãos de uma elite profissional; a única questão é como essa elite deve ser constituída. Esquerdistas frequentemente desenvolvem seu argumento em diminuir a irracionalidade do mercado e prometer um estado das coisas mais humano.
Ainda assim não há evidência de que estaríamos melhor se o estado possuísse tudo. Da União Soviética à Alemanha Nazista, o século XX nos oferece diversos exemplos disso, nenhum deles promissores. Haja vista suas origens históricas e as demandas de manuntenção de poder, não deveria surpreender que as burocracias estatais não são nada melhores que burocracias corporativas. Toda burocracia aliena seres humanos do seu próprio potencial, tornando-o algo externo que eles só podem acessar pelos seus canais.
Enquanto alguns políticos podem se opor a indivíduos ou classes poderosos, nenhum político vai contestar o poder hierárquico per se; como os magnatas, sua posição é contingente da centralização de poder, então eles não podem fazer nada diferente. Em casos extremos, um governo pode substituir uma classe capitalista por outra – como os Bolcheviques fizeram depois da Revolução Russa – mas nenhum governo vai se livrar da propriedae privada, pois governar necessariamente implica controlar capital. Se nós queremos criar um mundo sem trabalho, nós teremos que fazê-lo sem políticos.

Algumas vezes um candidato aparece dizendo tudo o que as pessoas tem dito umas as outras por muito tempo – ele parece ter vindo de fora do mundo da política, parece realmente ser um de nós. Por criticar o sistema dentro da sua própria lógica, ele subitamente persuade as pessoas de que ele pode ser reformado – de que ele pode funcionar, se as pessoas certas tiverem poder. Assim muita energia que poderia ter ido para desafiar o sistema em si é redirecionado em apoiar outro candidato para o posto, que inevitavelmente falha em solucionar os problemas à que se propôs.
Esses candidatos só recebem tanta atenção porque eles se baseiam em sentimentos populares; uma coisa na qual eles são muito bons é desviar energia de movimentos das bases. Quando eles chegam ao poder e vendem o público, os partidos de oposição podem capitalizar em cima disso, ao associar as supostamente idéias radicais deles com os problemas que eles prometeram resolver – e conectar desilusão com o governo pra mais uma campanha política! Então devemos colocar nossa energia em apoiar políticos, ou em criar o momentum social que os força a assumir posições radicais em primeiro lugar?

Mais frequentemente ainda, somos aterrorizados à se concentrar no espetáculo eleitoral pelo panorama de sermos comandados pelos piores candidatos possíveis. “E se ele chegar ao poder?” Pensar que as coisas podem ficar ainda piores!
Mas o problema em primeiro lugar é que os políticos dominem tanto poder – de outra maneira não faria diferença quem segurasse as rédeas. Então enquanto for esse o caso, sempre haverão tiranos. E é por isso que temos que colocar nossa energia em soluções duradouras, não campanhas políticas.”
Retirado de Work, livro do coletivo anarquista Crimethinc, em processo de tradução.

Ação Direta, de Rob Sparrow

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A característica da ação direta é que ela busca chegar aos nossos objetivos por meio de nossas próprias atividades, ao invés de tentar isso por meio da ação de outros. A ação direta busca exercer o poder diretamente sobre os assuntos e as situações que nos dizem respeito. Dessa maneira, ela diz respeito à tomada do poder pelas próprias pessoas.

Nisso, ela se diferencia da maior parte de outras formas de ação política como as votações, os lobbies, as tentativas de se exercer pressão política com ações industriais ou midiáticas. Todas essas atividades buscam outras pessoas para alcançar nossos objetivos. Tais formas de ação funcionam com base na aceitação tácita de nossa própria fraqueza. Elas reconhecem que não temos nem o direito e nem o poder de influenciar a transformação. Tais formas de ação são, portanto, implicitamente conservadoras. Elas reconhecem a autoridade das instituições existentes e trabalham para evitar que atuemos, por nossa conta, para transformar o status-quo.

A ação direta repudia a aceitação da ordem existente e sugere que temos tanto o direito, quanto o poder, de transformar o mundo. Isso é demonstrado quando a ação direta é realizada. Os exemplos de ação direta incluem bloqueios, piquetes, sabotagens, ocupações, colocações de barras de metal em árvores[2], greves parciais, reduções no ritmo de trabalho[3] e a greve geral revolucionária. Na comunidade, ela envolve, entre outras coisas, o estabelecimento de nossas próprias organizações como as cooperativas de alimentos, as televisões e as rádios às quais a comunidade tem acesso, e que expõem nossas necessidades, o bloqueio da construção de uma rodovia que divide e envenena as nossas comunidades e a ocupação de moradias por necessidade. Nas florestas, a ação direta interpõe nossos corpos, nossa vontade e nossa ingenuidade entre a selva e aqueles que a destruiriam. Além disso, ela age contra os lucros das organizações que dirigem a exploração da natureza e contra essas próprias organizações. Na indústria e nos locais de trabalho, a ação direta tem também por objetivo aumentar o controle dos trabalhadores ou atacar diretamente os lucros dos patrões. As sabotagens e as reduções no ritmo de trabalho são técnicas populares e consagradas pelo tempo ao negar aos patrões os lucros da exploração de seus escravos assalariados. As greves parciais e as greves selvagens são formas de iniciar o conflito industrial que ataca diretamente os lucros dos patrões. No entanto, a ação industrial que é empreendida meramente como uma tática de parte das negociações para ganhar um aumento de salário ou outras concessões de um patrão, não é um exemplo de ação direta.

Como os exemplos de ação direta na comunidade citados acima sugerem, a ação direta é mais do que responder às injustiças ou às ameaças do Estado. A ação direta não é apenas um método de protesto, mas também uma forma de “construir o futuro agora”. Qualquer situação em que as pessoas se organizem para aumentar o controle sobre suas próprias condições, sem recorrer ao capital e ao Estado, constitui a ação direta. “Fazer nós mesmos” é a essência da ação direta, e não importa se o que estamos fazendo é resistir às injustiças ou nos esforçar para criar um mundo melhor agora, organizando-nos para satisfazer nossas próprias necessidades sociais. Esse tipo de ação direta, por razão de ser autônoma ao invés de ser uma resposta às atividades do capital e do Estado, oferece muito mais oportunidades para prosseguir com as ações e também para o sucesso. Podemos definir nossos próprios objetivos e atingi-los por meio de nossos próprios esforços.

Um dos aspectos mais importantes da ação direta é a organização envolvida para que ela tenha sucesso. Por meio da organização para atingir, nós mesmos, os nossos objetivos, aprendemos valiosas práticas e descobrimos que a organização sem hierarquia é possível. Nos lugares em que ela tem sucesso, a ação direta mostra que as pessoas podem controlar suas próprias vidas – e de fato, que a anarquia é possível. Podemos ver aqui que a ação direta e a organização anarquista são, de fato, dois lados da mesma moeda. Quando demonstramos o sucesso de uma, demonstramos a realidade da outra.

A Ilusão do Sufrágio Universal, de Mikhail Bakunin

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Os homens acreditavam que o estabelecimento do sufrágio universal garantia a liberdade dos povos. Mas infelizmente esta era uma grande ilusão e a compreensão da ilusão, em muitos lugares, levou à queda e à desmoralização do partido radical. Os radicais não queriam enganar o povo, pelo menos assim asseguram as obras liberais, mas neste caso eles próprios foram enganados.

Eles estavam firmemente convencidos quando prometeram ao povo a liberdade através do sufrágio universal. Inspirados por essa convicção, eles puderam sublevar as massas e derrubar os governos aristocráticos estabelecidos. Hoje depois de aprender com a experiência, e com a política do poder, os radicais perderam a fé em si mesmos e em seus princípios derrotados e corruptos. Mas tudo parecia tão natural e tão simples: uma vez que os poderes legislativo e executivo emanavam diretamente de uma eleição popular, não se tornariam a pura expressão da vontade popular e não produziriam a liberdade e o bem estar entre a população?

Toda decepção com o sistema representativo está na ilusão de que um governo e uma legislação surgidos de uma eleição popular deve e pode representar a verdadeira vontade do povo. Instintiva e inevitavelmente, o povo espera duas coisas: a maior prosperidade possível combinada com a maior liberdade de movimento e de ação. Isto significa a melhor organização dos interesses econômicos populares, e a completa ausência de qualquer organização política ou de poder, já que toda organização política se destina à negação da liberdade. Estes são os desejos básicos do povo. Os instintos dos governantes, sejam legisladores ou executores das leis, são diametricamente opostos por estarem numa posição excepcional.

Por mais democráticos que sejam seus sentimentos e suas intenções, atingida uma certa elevação de posto, vêem a sociedade da mesma forma que um professor vê seus alunos, e entre o professor e os alunos não há igualdade. De um lado, há o sentimento de superioridade, inevitavelmente provocado pela posição de superioridade que decorre da superioridade do professor, exercite ele o poder legislativo ou executivo. Quem fala de poder político, fala de dominação. Quando existe dominação, uma grande parcela da sociedade é dominada e os que são dominados geralmente detestam os que dominam, enquanto estes não têm outra escolha, a não ser subjugar e oprimir aqueles que dominam. Esta é a eterna história do saber, desde que o poder surgiu no mundo. Isto é, o que também explica como e porque os democratas mais radicais, os rebeldes mais violentos se tornam os conservadores mais cautelosos assim que obtêm o poder. Tais retratações são geralmente consideradas atos de traição, mas isto é um erro. A causa principal é apenas a mudança de posição e, portanto, de perspectiva.

Na suíça, assim como em outros lugares, a classe governante é completamente diferente e separada da massa dos governados. Aqui, apesar da constituição política ser igualitária, é a burguesia que governa, e é o povo, operários e camponeses, que obedecem suas leis. O povo não tem tempo livre ou educação necessária para se ocupar do governo. Já que a burguesia tem ambos, ela tem de ato, se não por direito, privilégio exclusivo. Portanto, na Suíça, como em outros países a igualdade política é apenas uma ficção pueril, uma mentira.

Separada como está do povo, por circunstâncias sociais e econômicas, como pode a burguesia expressar, nas leis e no governo, os sentimentos, as idéias, e a vontade do povo? É possível, e a experiência diária prova isto. Na legislação e no governo, a burguesia é dirigida principalmente por seus próprios interesses e preconceitos, sem levar em conta os interesses do povo. É verdade que todos os nossos legisladores, assim como todos os membros dos governos cantonais são eleitos, direta ou indiretamente, pelo povo.

É verdade que, em dia de eleição, mesmo a burguesia mais orgulhosa, se tiver ambição política, deve curvar-se diante de sua Majestade, a Soberania Popular. Mas, terminada a eleição, o povo volta ao trabalho, e a burguesia, a seus lucrativos negócios e às intrigas políticas. Não se encontram e não se reconhecem mais. Como se pode esperar que o povo, oprimido pelo trabalho e ignorante da maioria dos problemas, supervisione as ações de seus representantes? Na realidade, o controle exercido pelos eleitores aos seus representantes eleitos é pura ficção, já que no sistema representativo, o controle popular é apenas uma garantia da liberdade do povo, é evidente que tal liberdade não é mais do que ficção.